Maguto, o caçador
Ele levou sua mão à aljava. Ainda
lhe restavam cinco flechas. Continuou correndo pela floresta escura, iluminada
apenas pelos cipós que brilhavam feito neon e os gigantes cogumelos pintados
que cresciam por toda floresta que irradiavam o mesmo brilho. Em seu encalço
estavam um par de aramos-carú, bestas selvagens que se assemelhavam fisicamente
a cães, só que esses tinham oito patas, o tamanho de um boi jovem e de suas
enormes e afiadas presas escorria um líquido amarelo vívido capaz de adormecer
qualquer região do corpo humano em que encostasse. Os aramos-carú eram rápidos
e mortais, e, uma vez que captavam o odor de sua presa, não costumavam cessar sua
caçada até apanhá-la. Maguto era um caçador muito experiente. Podia com certa
facilidade emboscar as duas bestas que o seguiam e abatê-las com talvez uma ou
duas flechas cada um, mas ele não tinha tempo a perder e nem flechas para
esbanjar. A manhã logo chegaria e com ela o espírito mineral que Maguto caçava
adormeceria. Ele precisava abater o espírito antes disso. Só assim seria capaz
de capturar sua essência na runa vazia que carregava em um dos sacos amarrados
em seu cinto.
Maguto
atravessou um córrego com rapidez. Conforme corria pensava em maneiras de
abater os aramos-carú sem comprometer sua missão. Talvez conseguisse atingir a
testa de um deles com seu punhal de dente de jubá. Seria um golpe fatal, mas
como cuidaria do outro?
Eles
o alcançariam eventualmente. Maguto era muito rápido e já estava acostumado a
se locomover em terrenos como aquele, independente da iluminação. Ele sabia
onde as raízes das árvores iluminadas costumavam sair do chão, então evitava
passar por esses lugares para não acabar tropeçando nelas. Se precisasse se
jogar de algum lugar mais alto, só precisava mirar e cair sentado em um dos
cogumelos gigantes pintados. Esses cogumelos estocavam uma generosa quantia de
ar em seus topos e, quando atingidos com um impacto repentino, liberavam o
mesmo, amortecendo assim o impacto que receberam. Isso era um mecanismo de
defesa que a evolução os deu. Os frutos das árvores iluminadas tinham o tamanho
de um bebê humano e pesavam tanto quanto. Quando amadurecidos, choviam pela
floresta e ai de quem estivesse por baixo. Essa época era conhecida por todos
como a chuva da fruta luz, e aqueles sensatos sabiam que as florestas de
árvores iluminadas se tornavam muito perigosas durante a temporada. Os
cogumelos não tinham como deixar a área, então deram seu jeito. Poucos sabiam
disso, é claro, mas Maguto era um conhecedor da natureza.
O
som dos aramos-carú ficara mais alto. Eles estavam bem perto. O cheiro também
os entregava. Sua saliva paralisante amarela exalava um odor azedo pungente.
Eles
chegaram. Os aramos-carú eram conhecidos por caçar em casais. O macho e a fêmea.
Quando um deles morria era a hora do sobrevivente encontrar um novo parceiro e
procriar novamente. Parecia uma informação trivial, mas Maguto era mais sábio.
O aramo-carú fêmea é menos perigoso que o macho, pois sua saliva não faz
adormecer de imediato, demora algum tempo, enquanto a do macho te anestesia ao
toque. Poucos sabiam disso, porque na grande maioria dos casos, essa descoberta
era seguida de uma mordida letal.
Maguto
olhou rapidamente para trás e viu um dos aramos-carú se aproximando pela esquerda.
Era o macho. Ele sabia disso porque só o aramo-carú macho possui o focinho
trincado no topo. Isso era ótimo. O macho era o que precisava abater primeiro.
Era o mais perigoso. A julgar pelo cheiro, a fêmea estava dando a volta, para
pegá-lo de frente. Aquela era a hora de atacar. Ele não podia gastar um segundo
sequer com aqueles animais. O espírito mineral não o esperaria. Mas morrer não
causaria bem nenhum a ninguém, então lutaria.
Ele
pulou em um cogumelo e tomou impulso para escalar uma árvore iluminada. Se
agarrou no cipó brilhante e se içou numa velocidade impressionante até um galho
frutífero. Ele estava acostumado a fazer aquilo. Não ia ganhar muito tempo,
pois aramos-carú são exímios escaladores. Mas para o que planejava seria o
suficiente. Alcançou com sua mão esquerda uma fruta luz ainda longe de estar
madura, mas suficientemente nutrida. Ela brilhava com uma luz fraca e era
possível segurá-la com apenas uma mão. Com a mão direita ele tirou seu punhal
de dente de jubá de sua bainha. Olhou para baixo e viu que o aramo-carú macho
já começara a escalada e estaria em cima dele em menos de quatro segundos.
Seria o suficiente. Maguto fechou seus olhos e cravou seu punhal na fruta luz.
O motivo de tê-lo feito foi ele conhecer a fruta luz. Maguto sabia que uma
fruta luz madura libera um flash cegante sempre que tem seu exterior
comprometido. Aquela fruta luz ainda estava longe de estar madura, logo o flash
liberado não seria tão forte assim, mas seria o suficiente para cegar o aramo-carú
pelo tempo que precisava. Contou um segundo e abriu novamente os olhos. O aramo-carú
estava rugindo, de olhos fechados, enquanto se agarrava na árvore. Ele estava
parado no lugar. Era tudo que Maguto precisava. Em um movimento rápido e
preciso, ele arremessou seu punhal de dente de jubá, o mesmo repousou no pedaço
de carne macia que todo aramo-carú tinha no meio da testa. Maguto assistiu a
enorme besta cair. Era sempre interessante abater tais criaturas com apenas um
golpe. O lembrava que tudo no mundo, não importando seu tamanho, tinha um ponto
fraco, perceptível ou não.
Ele
pulou sentado, com rapidez, em um cogumelo gigante pintado, para amortecer sua
queda. Correu até o corpo do aramo-carú e retirou seu punhal da testa da besta.
Mesmo toda sua pressa se mostrou insuficiente. Por cima de uma moita frondosa o
aramo-carú fêmea pulou. E, com uma agilidade impressionante para uma criatura
de seu tamanho, atacou. O animal bateu com uma das patas dianteiras no peito de
Maguto, rasgando suas roupas, um pedaço de sua pele e o levando ao chão. Se
colocou em cima dele e o mordeu na julgular. Maguto colocou, instintivamente,
seu braço direito no caminho. As presas da aramo-carú se enterraram fundo em
sua carne, sua saliva amarela escorria pelo braço de Maguto, e ele gritava. Enquanto
a criatura mastigava seu braço, Maguto deixou cair, propositalmente, seu punhal
de dente de jubá de sua mão direita e o apanhou com a esquerda. Esfaqueou
desajeitadamente a testa do animal e, na terceira tentativa, encontrou o ponto
fraco. Quando o punhal se enterrou na testa do aramo-carú, a pressão de sua
mandíbula diminuiu. Apesar disso Maguto não tirou seu braço de lá de imediato.
Ele se içou para trás com as pernas e com sua mão esquerda, o mais rápido que
pôde. Conseguiu sair de debaixo do aramo-carú bem a tempo. A besta caiu sobre
seu peso, onde a segundos atrás estava o corpo de Maguto. Se ele ficasse preso
entre o animal e o chão, não sairia de lá sozinho. Ele cortou um pedaço de sua
roupa com seu punhal e usou o pano para puxar a mandíbula do animal para baixo,
com muito cuidado para que a saliva não tocasse em mais nenhum lugar. A dor
excruciante que sentiu conforme os dentes se desenterravam de sua carne seria o
suficiente para pagar boa parte de seus pecados.
A
boa notícia era que estava vivo, a má era que seu braço direito estava
quebrado. A mordida fora forte o bastante para quebrar seu osso. O que seria de
seus dias de caçador enquanto seu braço estivesse quebrado?
Maguto
tateou os sacos de couro pendurados em seu cinto e de um deles retirou um
pedaço arroxeado de um favo. Era seu item mais precioso no momento. O favo da
abelha rainha de Zanel. Ele conseguira aquilo depois de semanas tentando
localizar a colmeia que muitos acreditavam ser apenas uma lenda. Teve de lutar
com criaturas mortalmente perigosas e então queimar sua rainha, pois era o
único meio de matá-la. Como recompensa, conseguira cinco pedaços desse favo.
Uma porção daquele tamanho era capaz de curar qualquer corpo para sua forma
original. Maguto odiava ter que gastar seu último favo, mas ele precisava de
seu braço, agora mais do que nunca. Mastigou o pedaço e apreciou seu sabor. Era
doce, mas não enjoativo. Assim que o engoliu, seu braço direito e seu peito
começaram a formigar. Seus ferimentos foram consumidos por uma luz roxa que
vinha de dentro de sua carne e, em poucos segundos, ele estava novo em folha.
Maguto se levantou e tirou sua camisa de couro de javalo chifrudo. A usou então
para limpar a saliva amarela do aramo-carú, tomando muito cuidado para não
espalhá-la. Uma porção da saliva tinha escorrido do seu braço para seu peito
enquanto a besta o prendia e parte dela tinha passado pelo corte em sua roupa.
O resto fora afastado pela impermeabilidade do couro de javalo chifrudo. Sem
perder tempo, Maguto colocou seu punhal de dente de jubá de volta na bainha e
correu floresta a dentro. Se a situação fosse outra, ele estaria agora abrindo
o corpo dos dois aramos-carú e retirando deles a bolsa interna onde era alojada
a saliva paralisante, que venderia por preços razoáveis aos xamãs das tribos, e
boa parte da carne saborosa dos animais. Agora ele não tinha tempo pra isso.
Estava atrás de algo muito mais importante.
Faltando
poucos minutos para o sol nascer, Maguto terminara de atravessar a floresta.
Saiu disparado pela planície árida e logo avistou seu alvo. O espírito mineral
estava repousando em cima de seu corpo de origem, enquanto contemplava os
últimos minutos de céu negro e estrelado. Espíritos minerais estavam longe de
serem criaturas dóceis, mas não atacavam sem motivo. Isso daria a Maguto a
oportunidade de atacar primeiro. Existiam apenas duas maneiras de se capturar
um espírito, fosse ele animal, vegetal ou mineral, a primeira era ganhando o
respeito do mesmo, assim ele poderia te acompanhar de bom grado. Maguto não tinha
tempo para fazer amigos. Usaria o segundo meio, a força. Mas não era um
trabalho fácil. Espíritos eram criaturas imateriais, transparentes como
fantasmas, armas comuns não os atingiam, embora eles pudessem facilmente
atingir você. Para atingir um espírito era necessário outro espírito, ou uma
arma espiritual. Essas eram armas abençoadas por um xamã especializado, num
ritual onde um ou mais espíritos eram sacrificados para que sua essência fosse
aprisionada em um objeto, no caso, uma arma. As cinco flechas de Maguto eram
armas espirituais. O espírito de suas armas era o de um sabugueiro atroz, um
espírito vegetal, o que daria certa vantagem contra o espírito mineral que
enfrentaria.
A
forma dos espíritos era sempre diferente. Esse se mostrava um colosso. Suas
pernas e cintura espectrais eram finas, o que passava a imagem de uma criatura
lenta, assim como grande parte dos espíritos minerais, mas da cintura para cima
era enorme. Uma pedra viva de quatro braços. Ele tinha o tamanho de três homens
e, provavelmente, a força de vinte ou mais. Não tinha um rosto, mas Maguto
sabia que era capaz de ver, ouvir e até mesmo emitir sons. Espalhados pelo seu
torso, cristais violetas entravam em contraste com o calcário cinza claro do
resto do corpo. Maguto sabia que aqueles cristais eram os pontos fracos do
espírito mineral. Era um padrão neles tê-los expostos para compensar sua enorme
resistência. Ele tinha cinco flechas. Cinco flechas precisavam bastar, ou tudo
aquilo estaria perdido.
Ele
pegou três flechas de sua aljava e as manteve em sua mão direita para maior
agilidade. Retesou a corda de seu arco com uma das flechas já em posição. O
espírito estava de costas para ele, ainda não o tinha visto. Maguto se
aproveitou da situação, como todo bom caçador, e fez seu disparo certeiro.
Antes mesmo da primeira flecha atingir seu alvo, uma segunda já estava
preparada, mas ele não atirou. Precisava primeiro avaliar a reação do espírito.
Assim que sentiu a flecha trincar um de seus cristais, o espírito se levantou
de súbito e rugiu. O som emitido lembrou Maguto de um deslizamento. O espírito
se virou e Maguto disparou a segunda flecha, atingindo um segundo cristal. De
imediato preparou sua terceira flecha. Ele se encontrava a uma distância
relativamente segura do espírito. Se conseguisse ser mais rápido que ele, o que
era quase garantido, não seria um alvo fácil. A criatura deu o primeiro passo
em direção a Maguto e então o segundo. Ele era bem lento, como esperado. Maguto
então disparou a terceira flecha, mas a criatura fora mais esperta e dessa vez,
um de seus quatro braços amparou o projétil em pleno ar. Maguto trincou seus
dentes. Perdera uma de suas flechas em vão. O espírito não o alcançaria, mas,
agora que estava em alerta, Maguto não conseguiria continuar com seus disparos
tão eficazes. Se aproximar do espírito com precaução seria a chave. Um disparo
mais de perto diminuiria o tempo de reação disponível para o espírito, assim
ele não conseguiria se proteger. Porém, o risco de se aproximar de um espírito
mineral não era pequeno. Eles não eram conhecidos por terem mãos leves.
Maguto
coçou sua barriga nua e então pegou suas duas últimas flechas com a mão direita
e posicionou uma delas em seu arco. Foi então de encontro ao espírito. Quando
se aproximou, retesou a corda do arco e procurou o ponto fraco mais exposto.
Era um cristal relativamente grande, pouco acima da cintura. A envergadura de
seus quatro braços dificultaria defender aquele ponto em específico. Quanto
mais Maguto se aproximava, mais fria ficava sua barriga, o espírito parecia
crescer cada vez mais, o nervosismo ia aumentando mas ele não se deixou abalar.
Lançou sua quarta flecha. O espírito tentou se defender como da última vez, mas
não foi rápido o suficiente. O cristal estalou e ele caiu de joelhos, urrando. Usando
seus quatro braços ele começou a se arrastar em direção a Maguto. Foi então
que, para seu desespero, ambos descobriram o quão mais rápido ele conseguia se
locomover dessa maneira. Maguto partiu para o tudo ou nada. Colocou sua última
flecha em posição. Ou ao menos pensou que colocou. Seu braço direito não o
obedecia. Sua última flecha estava no chão. Assim ele fizera mais uma
descoberta interessante. O favo da abelha rainha de Zanel curava um corpo para
sua forma original, mas não limpava suas impurezas e enfermidades. A saliva da aramo-carú
estava fazendo efeito. O frio que sentira na barriga não era proveniente apenas
de medo, a final de contas.
A
criatura se aproximou rápido demais enquanto Maguto decidia o que fazer. Foi
plena sorte ele ter se abaixado para coletar sua flecha com a mão esquerda no
instante em que o enorme e pesado braço do espírito de pedra passara deslocando
uma grande massa de ar, o errando por muito pouco. Maguto tinha a flecha em
mãos quando levantou a cabeça, ainda abaixado e se vira naquela situação. Ele
tinha duas alternativas. Corria para longe do espírito, para dentro da floresta
e garantia sua vida, ou arriscava tudo em um ataque suicida insensato. Ele já
tinha chegado até ali. Maguto era teimoso por natureza. Investiu então contra o
espírito que parecia surpreso com o ataque. O braço direito de Maguto pendia
enquanto ele pulava em direção ao espírito. Dois dos enormes braços de pedra
etérea se chocaram desajeitadamente em pleno ar ao tentarem atingir Maguto e
acabaram, sem querer, formando um escudo que impossibilitava os outros dois
braços de atingi-lo. A sorte estava do seu lado dessa vez. A não ser que o
espírito não sucumbisse com esse último ataque. Não, ele não podia pensar
assim. Ele precisava cair. Ele usou toda a força de seu braço esquerdo e
enterrou a ponta da flecha em um dos cristais violetas. Mais uma vez o espírito
urrou. Ele então começou a brilhar e se desfazer em luz. Aquela era a hora.
Maguto
soltou a flecha no chão e pegou, como muita dificuldade, em um dos seus sacos
de couro a runa vazia que trazia consigo. Era uma pedra lisa e esbranquiçada,
bem disforme. Ela precisava entrar em contato com o corpo etéreo do espírito
antes que ele sumisse, assim, capturando sua essência. Ele tocou o espírito com
a runa e a mesma começou a sugar as luzes nas quais o espírito se desfazia.
Quando terminou a sucção, a runa apresentava um símbolo em sua maior face
plana. Infelizmente ele não era capaz de ler o símbolo. Guardou então a runa de
volta no saco de couro e recolheu três das flechas, as que ainda podiam ser
reutilizadas, e, antes de tomar seu rumo, assistiu satisfeito o nascer do sol.
Dois
dias depois de sua caçada, Maguto subiu uma grande colina, onde planejava
encontrar um certo alguém. Ao chegar no topo, encontrou uma rocha grande e oval
à sombra de uma árvore alta. Sentou-se nela e aguardou. O estrilar dos insetos
e a brisa fresca da manhã o fizeram adormecer. Quando abriu os olhos, percebeu
que já não estava mais sozinho. Um homem alto e magro vestido com roupas de
pele e um colar de presas estava de pé ao seu lado.
- Conseguiu capturar o espírito?
– O homem perguntou.
- Mas é claro. – Respondeu Maguto
com um sorriso no rosto. – Você contratou o melhor dos melhores.
- Fico feliz em saber que meus
recursos foram bem investidos.
Maguto
tirou de seu saco de couro a runa e a entregou nas mãos do homem. Ele, em
resposta, lhe entregou um outro saco de couro.
- O combinado está todo aí. Tem
também um bônus por sua lealdade.
- Deixe-me adivinhar. – Maguto
ponderou. – Você vai usar esse espírito para dominar e saquear aldeias. Matar
inocentes pelos seus recursos, e, quando vierem me contratar para dar cabo de
você, espera que eu recuse.
O
homem sorriu enquanto contemplava o horizonte.
- Você é realmente bom. – Disse
então.
- O melhor dos melhores, como já
disse.
Maguto
se levantou, girou nos calcanhares e se foi. Ele não se importava com os
outros. Ninguém nunca se importara com ele. Na floresta era cada um por si e
era assim que preferia. Seu contratante era ingênuo. Recurso algum compraria
sua proteção. Se Maguto fosse contratado para dar cabo de algo ou alguém, era
melhor se preparar.