sábado, 25 de abril de 2015

Curtas #2

Sempre fui um amante de fantasia. Escrever sem limitações. Transcender a realidade. Simplesmente pensar fora da caixa. Essa história curta foi feita com essa base.






                                                                                          Maguto, o caçador



                     Ele levou sua mão à aljava. Ainda lhe restavam cinco flechas. Continuou correndo pela floresta escura, iluminada apenas pelos cipós que brilhavam feito neon e os gigantes cogumelos pintados que cresciam por toda floresta que irradiavam o mesmo brilho. Em seu encalço estavam um par de aramos-carú, bestas selvagens que se assemelhavam fisicamente a cães, só que esses tinham oito patas, o tamanho de um boi jovem e de suas enormes e afiadas presas escorria um líquido amarelo vívido capaz de adormecer qualquer região do corpo humano em que encostasse. Os aramos-carú eram rápidos e mortais, e, uma vez que captavam o odor de sua presa, não costumavam cessar sua caçada até apanhá-la. Maguto era um caçador muito experiente. Podia com certa facilidade emboscar as duas bestas que o seguiam e abatê-las com talvez uma ou duas flechas cada um, mas ele não tinha tempo a perder e nem flechas para esbanjar. A manhã logo chegaria e com ela o espírito mineral que Maguto caçava adormeceria. Ele precisava abater o espírito antes disso. Só assim seria capaz de capturar sua essência na runa vazia que carregava em um dos sacos amarrados em seu cinto.
                Maguto atravessou um córrego com rapidez. Conforme corria pensava em maneiras de abater os aramos-carú sem comprometer sua missão. Talvez conseguisse atingir a testa de um deles com seu punhal de dente de jubá. Seria um golpe fatal, mas como cuidaria do outro?
                Eles o alcançariam eventualmente. Maguto era muito rápido e já estava acostumado a se locomover em terrenos como aquele, independente da iluminação. Ele sabia onde as raízes das árvores iluminadas costumavam sair do chão, então evitava passar por esses lugares para não acabar tropeçando nelas. Se precisasse se jogar de algum lugar mais alto, só precisava mirar e cair sentado em um dos cogumelos gigantes pintados. Esses cogumelos estocavam uma generosa quantia de ar em seus topos e, quando atingidos com um impacto repentino, liberavam o mesmo, amortecendo assim o impacto que receberam. Isso era um mecanismo de defesa que a evolução os deu. Os frutos das árvores iluminadas tinham o tamanho de um bebê humano e pesavam tanto quanto. Quando amadurecidos, choviam pela floresta e ai de quem estivesse por baixo. Essa época era conhecida por todos como a chuva da fruta luz, e aqueles sensatos sabiam que as florestas de árvores iluminadas se tornavam muito perigosas durante a temporada. Os cogumelos não tinham como deixar a área, então deram seu jeito. Poucos sabiam disso, é claro, mas Maguto era um conhecedor da natureza.
                O som dos aramos-carú ficara mais alto. Eles estavam bem perto. O cheiro também os entregava. Sua saliva paralisante amarela exalava um odor azedo pungente.
                Eles chegaram. Os aramos-carú eram conhecidos por caçar em casais. O macho e a fêmea. Quando um deles morria era a hora do sobrevivente encontrar um novo parceiro e procriar novamente. Parecia uma informação trivial, mas Maguto era mais sábio. O aramo-carú fêmea é menos perigoso que o macho, pois sua saliva não faz adormecer de imediato, demora algum tempo, enquanto a do macho te anestesia ao toque. Poucos sabiam disso, porque na grande maioria dos casos, essa descoberta era seguida de uma mordida letal.
                Maguto olhou rapidamente para trás e viu um dos aramos-carú se aproximando pela esquerda. Era o macho. Ele sabia disso porque só o aramo-carú macho possui o focinho trincado no topo. Isso era ótimo. O macho era o que precisava abater primeiro. Era o mais perigoso. A julgar pelo cheiro, a fêmea estava dando a volta, para pegá-lo de frente. Aquela era a hora de atacar. Ele não podia gastar um segundo sequer com aqueles animais. O espírito mineral não o esperaria. Mas morrer não causaria bem nenhum a ninguém, então lutaria.
                Ele pulou em um cogumelo e tomou impulso para escalar uma árvore iluminada. Se agarrou no cipó brilhante e se içou numa velocidade impressionante até um galho frutífero. Ele estava acostumado a fazer aquilo. Não ia ganhar muito tempo, pois aramos-carú são exímios escaladores. Mas para o que planejava seria o suficiente. Alcançou com sua mão esquerda uma fruta luz ainda longe de estar madura, mas suficientemente nutrida. Ela brilhava com uma luz fraca e era possível segurá-la com apenas uma mão. Com a mão direita ele tirou seu punhal de dente de jubá de sua bainha. Olhou para baixo e viu que o aramo-carú macho já começara a escalada e estaria em cima dele em menos de quatro segundos. Seria o suficiente. Maguto fechou seus olhos e cravou seu punhal na fruta luz. O motivo de tê-lo feito foi ele conhecer a fruta luz. Maguto sabia que uma fruta luz madura libera um flash cegante sempre que tem seu exterior comprometido. Aquela fruta luz ainda estava longe de estar madura, logo o flash liberado não seria tão forte assim, mas seria o suficiente para cegar o aramo-carú pelo tempo que precisava. Contou um segundo e abriu novamente os olhos. O aramo-carú estava rugindo, de olhos fechados, enquanto se agarrava na árvore. Ele estava parado no lugar. Era tudo que Maguto precisava. Em um movimento rápido e preciso, ele arremessou seu punhal de dente de jubá, o mesmo repousou no pedaço de carne macia que todo aramo-carú tinha no meio da testa. Maguto assistiu a enorme besta cair. Era sempre interessante abater tais criaturas com apenas um golpe. O lembrava que tudo no mundo, não importando seu tamanho, tinha um ponto fraco, perceptível ou não.
                Ele pulou sentado, com rapidez, em um cogumelo gigante pintado, para amortecer sua queda. Correu até o corpo do aramo-carú e retirou seu punhal da testa da besta. Mesmo toda sua pressa se mostrou insuficiente. Por cima de uma moita frondosa o aramo-carú fêmea pulou. E, com uma agilidade impressionante para uma criatura de seu tamanho, atacou. O animal bateu com uma das patas dianteiras no peito de Maguto, rasgando suas roupas, um pedaço de sua pele e o levando ao chão. Se colocou em cima dele e o mordeu na julgular. Maguto colocou, instintivamente, seu braço direito no caminho. As presas da aramo-carú se enterraram fundo em sua carne, sua saliva amarela escorria pelo braço de Maguto, e ele gritava. Enquanto a criatura mastigava seu braço, Maguto deixou cair, propositalmente, seu punhal de dente de jubá de sua mão direita e o apanhou com a esquerda. Esfaqueou desajeitadamente a testa do animal e, na terceira tentativa, encontrou o ponto fraco. Quando o punhal se enterrou na testa do aramo-carú, a pressão de sua mandíbula diminuiu. Apesar disso Maguto não tirou seu braço de lá de imediato. Ele se içou para trás com as pernas e com sua mão esquerda, o mais rápido que pôde. Conseguiu sair de debaixo do aramo-carú bem a tempo. A besta caiu sobre seu peso, onde a segundos atrás estava o corpo de Maguto. Se ele ficasse preso entre o animal e o chão, não sairia de lá sozinho. Ele cortou um pedaço de sua roupa com seu punhal e usou o pano para puxar a mandíbula do animal para baixo, com muito cuidado para que a saliva não tocasse em mais nenhum lugar. A dor excruciante que sentiu conforme os dentes se desenterravam de sua carne seria o suficiente para pagar boa parte de seus pecados.
                A boa notícia era que estava vivo, a má era que seu braço direito estava quebrado. A mordida fora forte o bastante para quebrar seu osso. O que seria de seus dias de caçador enquanto seu braço estivesse quebrado?
                Maguto tateou os sacos de couro pendurados em seu cinto e de um deles retirou um pedaço arroxeado de um favo. Era seu item mais precioso no momento. O favo da abelha rainha de Zanel. Ele conseguira aquilo depois de semanas tentando localizar a colmeia que muitos acreditavam ser apenas uma lenda. Teve de lutar com criaturas mortalmente perigosas e então queimar sua rainha, pois era o único meio de matá-la. Como recompensa, conseguira cinco pedaços desse favo. Uma porção daquele tamanho era capaz de curar qualquer corpo para sua forma original. Maguto odiava ter que gastar seu último favo, mas ele precisava de seu braço, agora mais do que nunca. Mastigou o pedaço e apreciou seu sabor. Era doce, mas não enjoativo. Assim que o engoliu, seu braço direito e seu peito começaram a formigar. Seus ferimentos foram consumidos por uma luz roxa que vinha de dentro de sua carne e, em poucos segundos, ele estava novo em folha. Maguto se levantou e tirou sua camisa de couro de javalo chifrudo. A usou então para limpar a saliva amarela do aramo-carú, tomando muito cuidado para não espalhá-la. Uma porção da saliva tinha escorrido do seu braço para seu peito enquanto a besta o prendia e parte dela tinha passado pelo corte em sua roupa. O resto fora afastado pela impermeabilidade do couro de javalo chifrudo. Sem perder tempo, Maguto colocou seu punhal de dente de jubá de volta na bainha e correu floresta a dentro. Se a situação fosse outra, ele estaria agora abrindo o corpo dos dois aramos-carú e retirando deles a bolsa interna onde era alojada a saliva paralisante, que venderia por preços razoáveis aos xamãs das tribos, e boa parte da carne saborosa dos animais. Agora ele não tinha tempo pra isso. Estava atrás de algo muito mais importante.
                Faltando poucos minutos para o sol nascer, Maguto terminara de atravessar a floresta. Saiu disparado pela planície árida e logo avistou seu alvo. O espírito mineral estava repousando em cima de seu corpo de origem, enquanto contemplava os últimos minutos de céu negro e estrelado. Espíritos minerais estavam longe de serem criaturas dóceis, mas não atacavam sem motivo. Isso daria a Maguto a oportunidade de atacar primeiro. Existiam apenas duas maneiras de se capturar um espírito, fosse ele animal, vegetal ou mineral, a primeira era ganhando o respeito do mesmo, assim ele poderia te acompanhar de bom grado. Maguto não tinha tempo para fazer amigos. Usaria o segundo meio, a força. Mas não era um trabalho fácil. Espíritos eram criaturas imateriais, transparentes como fantasmas, armas comuns não os atingiam, embora eles pudessem facilmente atingir você. Para atingir um espírito era necessário outro espírito, ou uma arma espiritual. Essas eram armas abençoadas por um xamã especializado, num ritual onde um ou mais espíritos eram sacrificados para que sua essência fosse aprisionada em um objeto, no caso, uma arma. As cinco flechas de Maguto eram armas espirituais. O espírito de suas armas era o de um sabugueiro atroz, um espírito vegetal, o que daria certa vantagem contra o espírito mineral que enfrentaria.
                A forma dos espíritos era sempre diferente. Esse se mostrava um colosso. Suas pernas e cintura espectrais eram finas, o que passava a imagem de uma criatura lenta, assim como grande parte dos espíritos minerais, mas da cintura para cima era enorme. Uma pedra viva de quatro braços. Ele tinha o tamanho de três homens e, provavelmente, a força de vinte ou mais. Não tinha um rosto, mas Maguto sabia que era capaz de ver, ouvir e até mesmo emitir sons. Espalhados pelo seu torso, cristais violetas entravam em contraste com o calcário cinza claro do resto do corpo. Maguto sabia que aqueles cristais eram os pontos fracos do espírito mineral. Era um padrão neles tê-los expostos para compensar sua enorme resistência. Ele tinha cinco flechas. Cinco flechas precisavam bastar, ou tudo aquilo estaria perdido.
                Ele pegou três flechas de sua aljava e as manteve em sua mão direita para maior agilidade. Retesou a corda de seu arco com uma das flechas já em posição. O espírito estava de costas para ele, ainda não o tinha visto. Maguto se aproveitou da situação, como todo bom caçador, e fez seu disparo certeiro. Antes mesmo da primeira flecha atingir seu alvo, uma segunda já estava preparada, mas ele não atirou. Precisava primeiro avaliar a reação do espírito. Assim que sentiu a flecha trincar um de seus cristais, o espírito se levantou de súbito e rugiu. O som emitido lembrou Maguto de um deslizamento. O espírito se virou e Maguto disparou a segunda flecha, atingindo um segundo cristal. De imediato preparou sua terceira flecha. Ele se encontrava a uma distância relativamente segura do espírito. Se conseguisse ser mais rápido que ele, o que era quase garantido, não seria um alvo fácil. A criatura deu o primeiro passo em direção a Maguto e então o segundo. Ele era bem lento, como esperado. Maguto então disparou a terceira flecha, mas a criatura fora mais esperta e dessa vez, um de seus quatro braços amparou o projétil em pleno ar. Maguto trincou seus dentes. Perdera uma de suas flechas em vão. O espírito não o alcançaria, mas, agora que estava em alerta, Maguto não conseguiria continuar com seus disparos tão eficazes. Se aproximar do espírito com precaução seria a chave. Um disparo mais de perto diminuiria o tempo de reação disponível para o espírito, assim ele não conseguiria se proteger. Porém, o risco de se aproximar de um espírito mineral não era pequeno. Eles não eram conhecidos por terem mãos leves.
                Maguto coçou sua barriga nua e então pegou suas duas últimas flechas com a mão direita e posicionou uma delas em seu arco. Foi então de encontro ao espírito. Quando se aproximou, retesou a corda do arco e procurou o ponto fraco mais exposto. Era um cristal relativamente grande, pouco acima da cintura. A envergadura de seus quatro braços dificultaria defender aquele ponto em específico. Quanto mais Maguto se aproximava, mais fria ficava sua barriga, o espírito parecia crescer cada vez mais, o nervosismo ia aumentando mas ele não se deixou abalar. Lançou sua quarta flecha. O espírito tentou se defender como da última vez, mas não foi rápido o suficiente. O cristal estalou e ele caiu de joelhos, urrando. Usando seus quatro braços ele começou a se arrastar em direção a Maguto. Foi então que, para seu desespero, ambos descobriram o quão mais rápido ele conseguia se locomover dessa maneira. Maguto partiu para o tudo ou nada. Colocou sua última flecha em posição. Ou ao menos pensou que colocou. Seu braço direito não o obedecia. Sua última flecha estava no chão. Assim ele fizera mais uma descoberta interessante. O favo da abelha rainha de Zanel curava um corpo para sua forma original, mas não limpava suas impurezas e enfermidades. A saliva da aramo-carú estava fazendo efeito. O frio que sentira na barriga não era proveniente apenas de medo, a final de contas.
                A criatura se aproximou rápido demais enquanto Maguto decidia o que fazer. Foi plena sorte ele ter se abaixado para coletar sua flecha com a mão esquerda no instante em que o enorme e pesado braço do espírito de pedra passara deslocando uma grande massa de ar, o errando por muito pouco. Maguto tinha a flecha em mãos quando levantou a cabeça, ainda abaixado e se vira naquela situação. Ele tinha duas alternativas. Corria para longe do espírito, para dentro da floresta e garantia sua vida, ou arriscava tudo em um ataque suicida insensato. Ele já tinha chegado até ali. Maguto era teimoso por natureza. Investiu então contra o espírito que parecia surpreso com o ataque. O braço direito de Maguto pendia enquanto ele pulava em direção ao espírito. Dois dos enormes braços de pedra etérea se chocaram desajeitadamente em pleno ar ao tentarem atingir Maguto e acabaram, sem querer, formando um escudo que impossibilitava os outros dois braços de atingi-lo. A sorte estava do seu lado dessa vez. A não ser que o espírito não sucumbisse com esse último ataque. Não, ele não podia pensar assim. Ele precisava cair. Ele usou toda a força de seu braço esquerdo e enterrou a ponta da flecha em um dos cristais violetas. Mais uma vez o espírito urrou. Ele então começou a brilhar e se desfazer em luz. Aquela era a hora.
                Maguto soltou a flecha no chão e pegou, como muita dificuldade, em um dos seus sacos de couro a runa vazia que trazia consigo. Era uma pedra lisa e esbranquiçada, bem disforme. Ela precisava entrar em contato com o corpo etéreo do espírito antes que ele sumisse, assim, capturando sua essência. Ele tocou o espírito com a runa e a mesma começou a sugar as luzes nas quais o espírito se desfazia. Quando terminou a sucção, a runa apresentava um símbolo em sua maior face plana. Infelizmente ele não era capaz de ler o símbolo. Guardou então a runa de volta no saco de couro e recolheu três das flechas, as que ainda podiam ser reutilizadas, e, antes de tomar seu rumo, assistiu satisfeito o nascer do sol.
                Dois dias depois de sua caçada, Maguto subiu uma grande colina, onde planejava encontrar um certo alguém. Ao chegar no topo, encontrou uma rocha grande e oval à sombra de uma árvore alta. Sentou-se nela e aguardou. O estrilar dos insetos e a brisa fresca da manhã o fizeram adormecer. Quando abriu os olhos, percebeu que já não estava mais sozinho. Um homem alto e magro vestido com roupas de pele e um colar de presas estava de pé ao seu lado.
- Conseguiu capturar o espírito? – O homem perguntou.
- Mas é claro. – Respondeu Maguto com um sorriso no rosto. – Você contratou o melhor dos melhores.
- Fico feliz em saber que meus recursos foram bem investidos.
                Maguto tirou de seu saco de couro a runa e a entregou nas mãos do homem. Ele, em resposta, lhe entregou um outro saco de couro.
- O combinado está todo aí. Tem também um bônus por sua lealdade.
- Deixe-me adivinhar. – Maguto ponderou. – Você vai usar esse espírito para dominar e saquear aldeias. Matar inocentes pelos seus recursos, e, quando vierem me contratar para dar cabo de você, espera que eu recuse.
                O homem sorriu enquanto contemplava o horizonte.
- Você é realmente bom. – Disse então.
- O melhor dos melhores, como já disse.
                Maguto se levantou, girou nos calcanhares e se foi. Ele não se importava com os outros. Ninguém nunca se importara com ele. Na floresta era cada um por si e era assim que preferia. Seu contratante era ingênuo. Recurso algum compraria sua proteção. Se Maguto fosse contratado para dar cabo de algo ou alguém, era melhor se preparar.