terça-feira, 28 de abril de 2015

Curtas #3

               Toda princesa acaba encontrando seu amor. Mas e se...


                                            

                                                                        O amor de Míria



                       Da janela de seu suntuoso quarto, a princesa Míria admirou a beleza das terras de sua família. Os vastos campos carmesins de rosas, as gentis curvas do rio Ealian, mais ao fundo a floresta, cheia de árvores tão elegantemente frondosas. Uma vista tão linda, tão interessante e, tão entediante. Setecentos e vinte oito dias se passaram desde sua menarca, mas príncipe algum tentara sua sorte contra o terrível e mortal dragão turquesa que defendia o enorme castelo no qual a princesa estava presa.
                A tarde passou lentamente, como sempre, mas Míria já estava acostumada com o ritmo do relógio. Um dia ela tivera esperança, que então se transformara em inquietação, então numa revolta angustiante e agora nada mais era que um contentamento com sua rotina. Ela sabia que não era das princesas a mais bela, mas acreditara que algum príncipe, qualquer príncipe, iria ao seu resgate.
                Almoçava e jantava com os criados deixados no castelo apenas para alimenta-la e tratar de qualquer enfermidade que viesse a ter. No início, a princesa repudiara a presença de seus servos à mesa, mas conforme o tempo passava, a solidão se intensificava, e hoje, mesmo que sob um véu de inveja e falsidade, seus servos eram seus únicos amigos.
                Seu pai, o rei, não a colocara ali por que quis. Muito pelo contrário. Ele era totalmente contra encarcerar sua única filha e deixá-la aos cuidados de um dragão, cuja captura o custara muito caro, mas a decisão fora dela. "Quero o marido mais bravo de todo o reino.", ela dissera, e então propôs o esquema a seu pai, que impotente diante dos encantos de sua filha, aceitou, ainda que relutante. A colocou na torre mais alta de um de seus castelos de veraneio e fez com que a notícia se espalhasse por todos os reinos.
                Durante a noite, a princesa Míria passava seu tempo cantarolando as poucas canções que ouvira dos bardos que atendiam aos banquetes reais quando ainda era uma criança. As estrelas brilhavam no céu, formando algumas constelações que não lhe eram estranhas e outras muitas mais. Antigamente a princesa desejava, todas as noites, que no dia seguinte seu amado viesse lhe salvar. Cansara. Hoje apenas as olhava e cantarolava, pensando no que os criados cozinhariam pela manhã, pois era a única inconstância de seu dia.
                Deitada em sua macia cama, com os mais confortáveis lençóis e os mais fofos travesseiros, ela tentou adormecer. O clima estava fresco e o dragão não roncava esta noite, o que faria do sono menos tímido. Ela fechou seus olhos, controlou sua respiração e permaneceu imóvel. Minutos se passaram e quando ela estava prestes a adormecer, ouviu um som metálico, o maldito dragão voltara a roncar. Ela nunca se acostumaria com esse som. A luz, entretanto, era hipnotizante. "Luz?", ela se perguntou. Mesmo de olhos fechados pôde ver a claridade. Abriu então os olhos de imediato e se deparou com aquele círculo oval de luz azul espectral que pairava no meio de seu quarto.
                Ela puxou os lençóis até o nariz para se proteger do que quer que fosse aquilo. Seus olhos esbugalhados deixavam claro o quão espantada e alarmada ela estava. Apesar disso não gritou. Não queria chamar a atenção daquela coisa. O círculo permaneceu imóvel, a um palmo do chão. Tinha por volta de um metro e setenta de altura e meio metro de largura. Era dele que vinha o som metálico. Míria fechou seus olhos e os massageou com os dedos, não era possível ver o que estava vendo. Quando os abriu novamente, lá continuava. Beliscou a própria coxa por debaixo dos lençóis, mas não estivera sonhando. O círculo continuou lá e Míria o encarou por sabe-se lá quantos minutos. Tomou coragem por fim, “O que tenho a perder?”, pensou. Ela se levantou e, vagarosamente, se aproximou do círculo. Estendeu sua mão na esperança de tocá-lo, mas eis que de dentro dele algo surgiu. Um humano atravessou o círculo pelo outro lado. Míria se assustou e caiu sobre seu cóccix. Levou a mão na boca para se impedir de gritar. Não queria assustar aquela pessoa. O humano que atravessou o círculo de luz era bem esguio. Usava roupas de pano pretas como o céu noturno e uma máscara cobria seu rosto, revelando apenas seus destemidos olhos castanhos e seu curto cabelo preto. Ele olhou Míria no chão e achou graça. Estendeu então sua mão para a princesa. Ela usou os pés para se arrastar sentada para trás, para longe dele. Ele então recolheu sua mão, olhou em volta do quarto, em seus olhos notava-se um tipo de tristeza nostálgica. Foi até a janela e debruçou-se em seu peitoril. Ficou ali, calmamente olhando as estrelas.
                Míria se levantou. Não sabia o que estava acontecendo. Quem era aquela pessoa? O que ela queria? Por que não falava nada?
- Quem é você? – Ela ousou.
                Ele virou sua cabeça e viu que ela já tinha se levantado. Foi andando até ela e, novamente, lhe estendeu a mão. Ela ficou em dúvida. Olhou para a mão dele e então para seus olhos. Eram incrivelmente gentis e sinceros. Olhou novamente para sua mão e então colocou a sua sobre. Ele fechou sua mão calmamente ao redor da dela e a puxou em direção a porta. Ela, ainda muito céptica, deu passos na direção em que ele a guiava. Queria saber o que ia acontecer em seguida. Ele abriu a porta do quarto com a outra mão e puxou a mão dela com mais força, mais pressa. Ela então entendeu. Estava tentando tirá-la de lá. Seria ele seu príncipe encantado? Seu bravo e misterioso guerreiro? “O que tenho a perder?”, pensou novamente. E se deixou levar pela nova centelha de esperança que acendera em seu peito.
                Os dois correram escada a baixo. Míria usava seu pijama e estava descalça, mas não se importava. Ele correu na frente, parecia conhecer bem o caminho. Os servos de seu pai não a veriam sumir, mas no fundo ela não se importava, nunca gostara deles mesmo. Diante do portão de metal do saguão ele parou. Míria sabia que além daquele portão dormia o dragão turquesa. Sua guarda pessoal. A criatura não deixava que nada passasse por ela. Por esse motivo, os mantimentos eram entregues ao castelo por embarcações e um elaborado sistema de polias.
                A princesa ouviu seu príncipe respirar fundo, parecia estar se preparando. Então o viu retirar um pequeno frasco de dentro de um bolso de sua camisa, na altura do peito. Agora que parara pra olhar mais de perto, viu que a roupa dele estava cheia desses mesmos bolsos espalhados por todo lugar onde suas mãos pudessem alcançar, a cor preta os ocultara no escuro. Ele levantou o pano que cobria seu rosto e bebeu o líquido verde e viscoso do frasco. Fez questão de virar as costas para a princesa quando o fez, para manter em segredo seu rosto. Ele respirou fundo três vezes e então seu corpo começara a tremer levemente. Ele se abraçou para conter o tremular. Míria achou aquilo muito estranho, mas ele tinha saído de um círculo de luz que se materializara no meio do quarto dela, então achou melhor não dizer nada.
                O portão de metal não podia ser aberto manualmente. Haviam duas rodas de metal em pedestais, uma de cada lado da porta, que acionavam um sistema de correntes e roldanas interno que abria o portão. Duas pessoas precisavam girá-las juntas para que o portão se abrisse. Míria o esperou pedir sua ajuda, mas ele não pareceu notar. Foi em direção ao portão de metal. “Ele vai perceber.”, ela pensou. Ele se virou para ela e fez dois sinais com a mão, o primeiro foi o espalmado então apontou o indicador para o chão. “Espere aqui.”, ela entendeu. Então ele colocou as duas mãos sobre o portão e o empurrou com força. O portão se abriu num estrondo. Míria não podia acreditar. Nem a força de cinco homens seria capaz de fazer aquele portão se mover. E mais um detalhe. Não era assim que o portão abria. Ele era içado para o alto. O que ele fizera fora simplesmente arromba-lo.
                Seguido do estrondo metálico do portão atingindo o chão em algum lugar do saguão, veio o rugido característico do grande dragão turquesa. Seu príncipe correu então salão à dentro. Míria levou menos de um minuto para ignorar completamente o pedido de seu salvador e foi atrás dele, curiosa. Assim que passou pelo umbral do portão, pôde ver o quão bem iluminado estava o salão. Enormes tochas estavam acesas por todo lado, com suas chamas tremeluzindo quando o ar soprava. Carcaças de grandes animais estavam espalhadas pelo chão. Em muitos locais, as paredes de pedra se encontravam pretas, chamuscadas. No centro, um enorme lagarto alado, com escamas mais resistentes que pedra e dentes maiores e mais afiados que lanças, se debatia. Em cima dele, entre o local de onde nasciam suas asas, estava seu príncipe, agarrado para manter o equilíbrio e esquivando da cauda do animal que fustigava sobre suas próprias costas feito um enorme chicote. “Ele é louco. Nem armado está.”, ela pensou. Mas ele não parecia precisar. Enquanto as estaladas da cauda em seu próprio corpo não o pareciam machucar, os socos que seu salvador deferia faziam a fera gritar. Ele continuou escalando pelo pescoço do animal até chegar quase à nuca, mas a besta batera suas asas com força, se levantando alguns metros do chão. O solavanco derrubou o príncipe encantado. Seu corpo fez um baque surdo ao tocar o chão, mas ele se levantou com rapidez. O dragão voltou ao chão. Não era como se tivesse muito espaço para voar. Olhou para ele e mostrou suas enormes presas. Terminou de abrir sua boca e revelou uma luz alaranjada em sua garganta que só podia significar uma coisa. Míria viu seu salvador mexer em um dos bolsos pouco antes de ser engolido por uma labareda mortal. Ela foi tomada por desespero, nunca antes havia visto alguém morrer. A temperatura no salão se elevou instantaneamente enquanto a criatura azul vomitava um mar de chamas. Depois de alguns segundos, seu fôlego pareceu acabar, então fechou sua aterrorizante boca. Fumaça saía de suas narinas enquanto o dragão já se virava para voltar ao seu lugar. Míria sairia dali de mansinho, antes que a criatura a visse e, logo pela manhã, enviaria uma carta ao seu pai para que lhe arrumasse um pretendente. Aquela vida de espera havia bastado para ela. Entendeu porque ninguém a tentara salvar, era simplesmente impossível vencer um dragão sozinho, mesmo quando o prêmio por tal feito era a sucessão ao trono.
                Antes de Míria se virar, algo chamou sua atenção. Onde esperava ver um cadáver carbonizado, estava uma esfera de luz verde, como o casco de uma tartaruga. A luz verde, aos poucos, começou a se desfragmentar e sumir pelo ar. De dentro dela, seu príncipe saltou, mas não fora um salto comum, ele pulou muitos metros, em direção ao dragão, que rugiu ao perceber. Enquanto ainda no ar, o dragão mordeu. Não tinha como se defender em pleno ar, ou até mesmo esquivar. Era seu fim. Quando o dragão o abocanhou na altura do peito, o resto de seu corpo se tornou imediatamente branco e se desfez em fumaça. O dragão não pareceu entender, assim como Míria. Então, seu príncipe estava debaixo no dragão, na reta de seu pescoço esticado e desprotegido, e ele segurava com as duas mãos para o alto alguma coisa. Essa coisa subiu em direção à garganta do dragão, como uma estrela , e perfurou a pele escamosa como se não fosse nada demais. A coisa agora ganhara forma, era uma enorme estaca de gelo, meio transparente e, agora, meio vermelha, enquanto o sangue do dragão escorria. A criatura gritou em agonia enquanto seu príncipe andava na direção de Míria, despreocupado e sem pressa. Assim que cessou o estrondo que o corpo do dragão causou quando tombou para o lado, ele oferecera novamente sua mão para a princesa. Ela a segurou, ainda atordoada diante tudo aquilo o qual não entendia. Seu príncipe a levou em direção a saída, mas antes, passaram pela cauda caída do dragão e, de sua ponta, ele retirou a última escama, era pequena e brilhante, na cor turquesa, como o resto do dragão.
                Quando chegaram ao lado de fora do castelo, Míria se tocou de que estava livre, que seu desejo havia finalmente se realizado. Ela havia sido retirada do castelo onde estava, figurativamente, presa e agora poderia viver feliz ao lado de seu príncipe, seu amor, seu futuro rei, o homem capaz de, sozinho, derrotar um dragão. Ele a levou até perto dos campos de rosas. “Um lugar romântico.”, ela pensara, aos risinhos. Soltou então sua mão e virou-se para encará-la.
- Obrigada, nobre e misterioso cavaleiro. – Disse a princesa. – Você me salvou das garras do temível dragão e agora, eis o seu prêmio.
                A princesa Míria deu um passo à frente e ficou na ponta dos pés, na esperança de ser beijada.
- Céus, que nojo! – Exclamou o príncipe, dando um passo à trás.
                Míria abriu os olhos, bastante confusa e um tanto envergonhada.
- O que houve? – Ela perguntou. – Meu amor não é de seu agrado?
- Seu amor é o que mais me agrada, e é exatamente por isso que estou aqui. Vim lhe dar essa lição.
- Lição? Do que está falando?
- Disso.
                O príncipe abriu sua mão o máximo que pôde, então estapeou o rosto de Míria, com força controlada, mas o suficiente para leva-la ao chão. Ela caiu e ficou por lá, muito desnorteada. Massageou sua bochecha rubra e olhou para seu príncipe, em choque.
- Finalmente entendi. Ela me disse que seria gratificante e agora finalmente entendi o quão certa estava. Isso foi realmente bom. – Falou o príncipe, exalando felicidade. Como se um peso antigo tivesse finalmente sido retirado de suas costas. – Quando você tiver a oportunidade, faça. Não tenho palavras para descrever o quão bom foi te bater.
                Míria não conseguia acreditar. Ela realmente não estivera sonhando com tudo aquilo?
                Se levantou então, enfurecida.
- Como ousa golpear a princesa? Quem você pensa que é?
- Olha, seu tom arrogante só me faz querer te bater novamente, mas vou te preservar para o meu bem. – O “príncipe” se abaixou e deixou seu rosto na altura do de Míria. – Quem eu penso que sou, você perguntou.
                Ele puxou o pano que cobria seu rosto, revelando-o para Míria.
                Era um rosto conhecido. Muito conhecido. Era como olhar em um espelho do futuro. O cabelo estava diferente, a pele não estava tão bem cuidada, mas era ela. Literalmente ela. O “príncipe” era Míria e Míria era o “príncipe”.
- Eu sou você.
                A versão mais nova permaneceu atônita, boquiaberta e imóvel.
- A lição que vim lhe ensinar é a seguinte: Nenhum amor vale mais que o amor próprio. Você não pode passar sua vida esperando por um príncipe que venha cuidar de você, te salvar e te dar a vida que sempre sonhou. Você precisa levantar o seu maldito rabo e trabalhar duro para isso. Ser independente, forte e destemida. E não adianta me vir com “Eu não sou capaz.” Porque eu, mais do que ninguém, sei bem do que você é capaz. Te resta descobrir e, pra isso, você tem que tentar. Mas me deixa te contar um segredo que a vida me ensinou: Todos são capazes. Os incapazes são justamente aqueles que não tentam. Pelo que você passou, eu passei. O que você está sentindo, eu senti. O tapa que você levou, eu levei. As palavras que você escutou, eu escutei. E escutei mesmo. Sugiro que faça o mesmo. Tome aqui. – A Míria mais velha puxou a mão da mais nova, que não resistiu, a abriu e em sua palma colocou a escama de dragão turquesa que havia obtido minutos atrás. – Guarde isso consigo e quando a hora chegar você vai saber o que fazer. Agora preciso ir. Aqui meu dever termina e o seu começa. Lembre-se sempre, o único amor que você precisa nessa vida é o seu, o que vier a somar é lucro.
                Ela se afastou de sua versão mais nova, mas se virou novamente.
- Quase me esqueci. Ao sul daqui há um vilarejo chamado Gollintom. Volte para o castelo, corte seu cabelo curto como o meu, roube umas roupas menos elegantes das criadas, mude seu nome para Galéia e procure no vilarejo por uma senhora de idade chamada Melvina. Ela vai te ensinar tudo.
                A Míria mais velha abriu um de seus bolsos e de dentro dele retirou o que, sem dúvida alguma, era uma metade da escama de dragão turquesa. A Míria mais nova olhou para a escama inteira em sua mão para se certificar.
- Metade para ir e metade para voltar. – Disse a mais velha.

                Ela então falou meia dúzia de palavras estranhas e jogou a meia escama em sua frente. A escama se desfez em luz. O mesmo círculo oval de luz azul espectral que vira em seu quarto se abriu, e seu outro eu pulou e sumiu por dentro dele enquanto dizia adeus.