Essa história curta foi o resultado de uma manhã não tão agradável que um dia tive o desprazer de vivenciar.
Felix Sortudo. Manhã do dia 13
O dia
começou um pouco mais cedo para Felix, e, ainda assim, mais tarde do que
deveria. Ele tinha um compromisso para o dia, uma consulta no dermatologista.
Tinha se programado para acordar as oito, realizar sua rotina matinal, sem
pressa, e assim, conseguir estar no consultório com antecedência. Infelizmente,
seu celular resolveu ter problemas com a bateria enquanto Felix dormia, se
desligando e levando consigo a função "despertador" com a qual Felix
contava. Ele não era um cara de sorte, verdade fosse dita. Se ao menos tivesse dormido mais cedo na
noite anterior. Mas estava ocupado demais fazendo uma social com alguns amigos.
Social essa que já estava marcada fazia semanas, apenas calhou do
dermatologista só estar disponível no dia seguinte à social. Ele não era um
cara de sorte.
Meia
hora de atraso. Não era muito, mas durante o turno da manhã, num consultório
que atende por ordem de chegada, Felix sabia por experiência que era a
diferença entre ter que esperar algumas horas a mais para ser atendido. Mesmo
assim, não ia desistir. Levantou-se da cama suficientemente disposto e foi
direto para o banho. Ligou seu chuveiro no quente, como de costume. Colocou a
mão na água corrente e esperou até que a temperatura lhe agradasse. Assim que
entrou debaixo d'água e a sentiu relaxar seu corpo, a energia elétrica de sua
casa foi cortada, assim como a de outras casas da região. Vinha acontecendo com
certa frequência, tais problemas no fornecimento. A água de seu banho
rapidamente esfriou. Felix odiava banhos frios, mas não era um homem de sorte.
Saiu o mais rápido que pôde do banho, sem comprometer sua limpeza. Colocou uma
roupa fresca para sair no dia quente e, dessa vez, optou por ir com um chinelo.
Estava quente demais para usar tênis ou sapato, e além do mais, era apenas uma
ida ao dermatologista.
Antes
de sair de casa decidiu se hidratar. Não ia querer ter sede enquanto esperava
por sua consulta. E por falar nisso, era melhor levar um livro consigo, algo
para matar seu tempo. Pegou seu livro de cabeceira, "Lótus", um livro
que vinha apreciando e degustando aos poucos pela última semana, e, com ele em
mãos, foi até a cozinha em busca de água. Abriu a geladeira e alcançou a
primeira garrafa que viu. Chegou a olhar para um copo, mas não tinha tempo pra
isso, beberia no gargalo. Ao virar a garrafa veio a surpresa, que na verdade
não o surpreendeu em nada. A garrafa fora mal fechada por um amigo que o
visitara alguns dias atrás. Seu conteúdo foi entornado sobre Felix que, por
reflexo pulou pra trás, batendo com as costas na quina de um móvel, mas
poupando a parte de baixo de sua vestimenta de um banho gelado como o que ele
já havia tomado alguns minutos atrás. Tristemente, o mesmo não podia ser dito a
respeito de sua camisa e, como de se esperar, seu livro. Ele não era um cara de
sorte.
Trocou
a camisa e deixou seu livro em casa, tentaria salvá-lo quando chegasse. Andou
até o ponto de ônibus, cabisbaixo. Seus dias não costumavam começar muito
melhores que aquele, mas em sua escala de azar, aquele dia já estava de parabéns.
Ficou um bom tempo esperando seu ônibus. Era engraçado perceber quantos dos
ônibus dos quais um dia ele precisara passavam por ele, enquanto o que ele
agora precisava, o que costumava vir aos montes como formigas enfileiradas
atrás de um pirulito suicida, não passava. Para se tranquilizar, ele mantinha
em mente que, ao menos esse tipo de problema, não era só dele. Depois de
inquietantes minutos, de pé ao sol, assistindo seus minutos de vantagem se
esvaírem diante de seus olhos, eis que ele aparece no horizonte, seu ônibus. Os
olhos de Felix brilharam enquanto ele se aproximava, e então, seus olhos foram
tomados por uma escuridão repentina, seguidos de um "Adivinha quem
é?" em uma doce voz feminina. Ele se virou rápido, com um sorriso no rosto.
Ele sabia quem era. Uma amiga sua que não via faziam uns cinco dias. Não era
tanto tempo, a saudade não era tão forte, mas ainda assim, era sua amiga. Felix
não era um homem de sorte, mas ele tinha amigos, bons amigos. Felix dava valor
a isso mais que tudo. Sim, ele acabou perdendo seu ônibus. Sim, ele acabou se
atrasando por mais dez minutos, que provavelmente se transformariam em mais uma
hora e meia de aguardo no consultório do dermatologista, mas ao menos tinha
tido um agradável e inesperado encontro com alguém que lhe fazia bem. Mais dos
ônibus que lhe serviam passaram enquanto ele conversava, mas por mais que lhe
doesse os ver passar, não cogitou em momento algum parar de conversar. Quando
sua amiga se foi, teve que esperar mais um tempo até outro ônibus aparecer.
Finalmente, conseguiu pegar um. Ao subir no ônibus, tateou os bolsos. O
trocador o encarava, esperando para fazer seu serviço. Foi quando tirou os
documentos do bolso que Felix percebeu. Sua carteira estava em casa. Era mesmo
um homem de pouca sorte.
Desceu
do ônibus enquanto passageiros o fitavam com olhares tortos, o julgando. Ele
ficou um tempo parado, ponderando seu próximo movimento. Felix não andava com
seus documentos na carteira, junto ao seu dinheiro. Tinha medo de ser
assaltado, afinal de contas, não era um cara de sorte. Dali ele tinha duas
opções: voltar em casa e pegar sua carteira ou ir andando até o dermatologista.
Ele sabia que se voltasse em casa, ia acabar desistindo, deitando em sua cama.
Precisava dar continuidade à sua odisseia. O caminho não seria tão longo assim.
Estimados vinte minutos de caminhada. Já estava atrasado mesmo...
O sol
estava forte sobre sua cabeça. Suor escorria pelo seu corpo e, depois de dez
minutos de caminhada pelas ruas empoeiradas de sua cidade, suas grossas coxas
ardiam por dentro, onde a fricção de sua pele roçando a queimava. O mesmo
problema acontecia em seus pés. As tiras de borracha de seu chinelo se
arrastavam ritmicamente às laterais interiores de seus pés. "Ótimo dia pra
se usar chinelos.", ele pensou. Não era um cara de sorte. Andar cabisbaixo
mostrou ser lucrativo, ao menos. Pelo caminho, olhando para o chão, encontrou
uma nota de vinte reais. A pegou, feliz. A maré parecia estar virando. Mais à
frente, uma mulher desesperada mexia freneticamente em sua bolsa enquanto
falava ao celular e, aos berros nervosos, revelou ter perdido vinte reais que
estavam com ela até pouco tempo atrás. Felix era uma pessoa boa e, por isso,
ela era uma mulher de sorte.
Depois
de um grande desconforto por conta de suas queimaduras e uma frustrante falsa
esperança de que as coisas melhorariam, Felix conseguiu chegar ao consultório
do dermatologista. A sala de espera era bem pequena e já estava lotada. Algumas
pessoas esperavam do lado de fora, por falta de espaço. Ele sabia que seria um
longo dia de espera sem ter o que fazer, visto que seu celular estava com
problemas e seu livro havia se acidentado. Era azarado mesmo. Preferia apostar
em dez por cento das chances de alguém do que em suas noventa. Ficou de pé do lado
da porta depois de anunciar sua chegada para a secretária que mantinha uma
lista da ordem de atendimento. Nem dez minutos se passaram e a tal secretária
recebeu uma ligação. Pelas palavras que ela usou ao telefone, Felix conseguiu
compreender que falava com o médico, o que deveria estar atendendo no momento.
Assim que enganchou de volta o telefone, a secretária contara que o médico
havia se atrasado pois sua filha tivera uma reação alérgica e que agora estava
com ela no hospital, que não poderia atender durante todo o dia e para que ela
remarcasse todas as consultas. Os outros pacientes se revoltaram, se desesperaram
e tomaram aquilo como um grande insulto. Felix? Ele deu as costas e voltou pra
sua casa. Aquele tipo de coisa costumava a acontecer. Ao menos não acontecera
só com ele dessa vez. Não é como se ele gostasse de ver pessoas se dando mal,
mas é como dizem, a miséria adora companhia. Saindo do consultório, um outro
amigo que passava reconheceu Felix ao longe e o chamou. Conversaram por um
tempo e então tomaram seus rumos.
Muito
acontecera a Felix em tão pouco tempo. Mas ele não se abatia. Mantinha o bom
humor, por que sorte e azar são muito relativos. Apesar das inúmeras
frustrações do dia a dia, Felix encontrara dois de seus amigos e teve a oportunidade
de passar um tempo com eles. Ele escolhia, deliberadamente, para quais
acontecimentos deveria dar valor.
A manhã
de Felix o havia destruído, e mesmo assim, ele se sentia a pessoa mais sortuda
do mundo.