sexta-feira, 24 de abril de 2015

Curtas #1

Essa história curta foi o resultado de uma manhã não tão agradável que um dia tive o desprazer de vivenciar.





                     Felix Sortudo. Manhã do dia 13          



                O dia começou um pouco mais cedo para Felix, e, ainda assim, mais tarde do que deveria. Ele tinha um compromisso para o dia, uma consulta no dermatologista. Tinha se programado para acordar as oito, realizar sua rotina matinal, sem pressa, e assim, conseguir estar no consultório com antecedência. Infelizmente, seu celular resolveu ter problemas com a bateria enquanto Felix dormia, se desligando e levando consigo a função "despertador" com a qual Felix contava. Ele não era um cara de sorte, verdade fosse dita.  Se ao menos tivesse dormido mais cedo na noite anterior. Mas estava ocupado demais fazendo uma social com alguns amigos. Social essa que já estava marcada fazia semanas, apenas calhou do dermatologista só estar disponível no dia seguinte à social. Ele não era um cara de sorte.
                Meia hora de atraso. Não era muito, mas durante o turno da manhã, num consultório que atende por ordem de chegada, Felix sabia por experiência que era a diferença entre ter que esperar algumas horas a mais para ser atendido. Mesmo assim, não ia desistir. Levantou-se da cama suficientemente disposto e foi direto para o banho. Ligou seu chuveiro no quente, como de costume. Colocou a mão na água corrente e esperou até que a temperatura lhe agradasse. Assim que entrou debaixo d'água e a sentiu relaxar seu corpo, a energia elétrica de sua casa foi cortada, assim como a de outras casas da região. Vinha acontecendo com certa frequência, tais problemas no fornecimento. A água de seu banho rapidamente esfriou. Felix odiava banhos frios, mas não era um homem de sorte. Saiu o mais rápido que pôde do banho, sem comprometer sua limpeza. Colocou uma roupa fresca para sair no dia quente e, dessa vez, optou por ir com um chinelo. Estava quente demais para usar tênis ou sapato, e além do mais, era apenas uma ida ao dermatologista.
                Antes de sair de casa decidiu se hidratar. Não ia querer ter sede enquanto esperava por sua consulta. E por falar nisso, era melhor levar um livro consigo, algo para matar seu tempo. Pegou seu livro de cabeceira, "Lótus", um livro que vinha apreciando e degustando aos poucos pela última semana, e, com ele em mãos, foi até a cozinha em busca de água. Abriu a geladeira e alcançou a primeira garrafa que viu. Chegou a olhar para um copo, mas não tinha tempo pra isso, beberia no gargalo. Ao virar a garrafa veio a surpresa, que na verdade não o surpreendeu em nada. A garrafa fora mal fechada por um amigo que o visitara alguns dias atrás. Seu conteúdo foi entornado sobre Felix que, por reflexo pulou pra trás, batendo com as costas na quina de um móvel, mas poupando a parte de baixo de sua vestimenta de um banho gelado como o que ele já havia tomado alguns minutos atrás. Tristemente, o mesmo não podia ser dito a respeito de sua camisa e, como de se esperar, seu livro. Ele não era um cara de sorte.
                Trocou a camisa e deixou seu livro em casa, tentaria salvá-lo quando chegasse. Andou até o ponto de ônibus, cabisbaixo. Seus dias não costumavam começar muito melhores que aquele, mas em sua escala de azar, aquele dia já estava de parabéns. Ficou um bom tempo esperando seu ônibus. Era engraçado perceber quantos dos ônibus dos quais um dia ele precisara passavam por ele, enquanto o que ele agora precisava, o que costumava vir aos montes como formigas enfileiradas atrás de um pirulito suicida, não passava. Para se tranquilizar, ele mantinha em mente que, ao menos esse tipo de problema, não era só dele. Depois de inquietantes minutos, de pé ao sol, assistindo seus minutos de vantagem se esvaírem diante de seus olhos, eis que ele aparece no horizonte, seu ônibus. Os olhos de Felix brilharam enquanto ele se aproximava, e então, seus olhos foram tomados por uma escuridão repentina, seguidos de um "Adivinha quem é?" em uma doce voz feminina. Ele se virou rápido, com um sorriso no rosto. Ele sabia quem era. Uma amiga sua que não via faziam uns cinco dias. Não era tanto tempo, a saudade não era tão forte, mas ainda assim, era sua amiga. Felix não era um homem de sorte, mas ele tinha amigos, bons amigos. Felix dava valor a isso mais que tudo. Sim, ele acabou perdendo seu ônibus. Sim, ele acabou se atrasando por mais dez minutos, que provavelmente se transformariam em mais uma hora e meia de aguardo no consultório do dermatologista, mas ao menos tinha tido um agradável e inesperado encontro com alguém que lhe fazia bem. Mais dos ônibus que lhe serviam passaram enquanto ele conversava, mas por mais que lhe doesse os ver passar, não cogitou em momento algum parar de conversar. Quando sua amiga se foi, teve que esperar mais um tempo até outro ônibus aparecer. Finalmente, conseguiu pegar um. Ao subir no ônibus, tateou os bolsos. O trocador o encarava, esperando para fazer seu serviço. Foi quando tirou os documentos do bolso que Felix percebeu. Sua carteira estava em casa. Era mesmo um homem de pouca sorte.
                Desceu do ônibus enquanto passageiros o fitavam com olhares tortos, o julgando. Ele ficou um tempo parado, ponderando seu próximo movimento. Felix não andava com seus documentos na carteira, junto ao seu dinheiro. Tinha medo de ser assaltado, afinal de contas, não era um cara de sorte. Dali ele tinha duas opções: voltar em casa e pegar sua carteira ou ir andando até o dermatologista. Ele sabia que se voltasse em casa, ia acabar desistindo, deitando em sua cama. Precisava dar continuidade à sua odisseia. O caminho não seria tão longo assim. Estimados vinte minutos de caminhada. Já estava atrasado mesmo...
                O sol estava forte sobre sua cabeça. Suor escorria pelo seu corpo e, depois de dez minutos de caminhada pelas ruas empoeiradas de sua cidade, suas grossas coxas ardiam por dentro, onde a fricção de sua pele roçando a queimava. O mesmo problema acontecia em seus pés. As tiras de borracha de seu chinelo se arrastavam ritmicamente às laterais interiores de seus pés. "Ótimo dia pra se usar chinelos.", ele pensou. Não era um cara de sorte. Andar cabisbaixo mostrou ser lucrativo, ao menos. Pelo caminho, olhando para o chão, encontrou uma nota de vinte reais. A pegou, feliz. A maré parecia estar virando. Mais à frente, uma mulher desesperada mexia freneticamente em sua bolsa enquanto falava ao celular e, aos berros nervosos, revelou ter perdido vinte reais que estavam com ela até pouco tempo atrás. Felix era uma pessoa boa e, por isso, ela era uma mulher de sorte.
                Depois de um grande desconforto por conta de suas queimaduras e uma frustrante falsa esperança de que as coisas melhorariam, Felix conseguiu chegar ao consultório do dermatologista. A sala de espera era bem pequena e já estava lotada. Algumas pessoas esperavam do lado de fora, por falta de espaço. Ele sabia que seria um longo dia de espera sem ter o que fazer, visto que seu celular estava com problemas e seu livro havia se acidentado. Era azarado mesmo. Preferia apostar em dez por cento das chances de alguém do que em suas noventa. Ficou de pé do lado da porta depois de anunciar sua chegada para a secretária que mantinha uma lista da ordem de atendimento. Nem dez minutos se passaram e a tal secretária recebeu uma ligação. Pelas palavras que ela usou ao telefone, Felix conseguiu compreender que falava com o médico, o que deveria estar atendendo no momento. Assim que enganchou de volta o telefone, a secretária contara que o médico havia se atrasado pois sua filha tivera uma reação alérgica e que agora estava com ela no hospital, que não poderia atender durante todo o dia e para que ela remarcasse todas as consultas. Os outros pacientes se revoltaram, se desesperaram e tomaram aquilo como um grande insulto. Felix? Ele deu as costas e voltou pra sua casa. Aquele tipo de coisa costumava a acontecer. Ao menos não acontecera só com ele dessa vez. Não é como se ele gostasse de ver pessoas se dando mal, mas é como dizem, a miséria adora companhia. Saindo do consultório, um outro amigo que passava reconheceu Felix ao longe e o chamou. Conversaram por um tempo e então tomaram seus rumos.

                Muito acontecera a Felix em tão pouco tempo. Mas ele não se abatia. Mantinha o bom humor, por que sorte e azar são muito relativos. Apesar das inúmeras frustrações do dia a dia, Felix encontrara dois de seus amigos e teve a oportunidade de passar um tempo com eles. Ele escolhia, deliberadamente, para quais acontecimentos deveria dar valor.

                A manhã de Felix o havia destruído, e mesmo assim, ele se sentia a pessoa mais sortuda do mundo.