Pobre Parlô
Parlô era uma criatura urbana.
Ele nasceu entre os altos prédios, a poluição do ar e os perturbadores sons dos
automóveis e seres humanos. Crescera acostumado com a vida agitada e sempre em
movimento. Ele não tinha um emprego ou família com a qual se preocupar, afinal
de contas, Parlô era uma ave, um Columba
Livia, também conhecido como "pombo". A disputa de territórios
onde se alimentar era seu único problema. Não era o mais forte ou o mais
renomado dos pombos, logo precisava se alimentar como e do que podia. Os
humanos tendiam a pensar em pombos como pragas, existiam em todo lugar e comiam
qualquer coisa. Era justamente essa superpopulação que os forçava se
alimentarem de tudo que podiam. Parlô tinha um sonho, queria poder acordar dia
após dia sem ter que se preocupar com a ideia de que talvez não tivesse o que
comer. Ser um dos melhores pombos e ter seu lugar nas praças, os locais de
alimentação mais disputados, onde apenas a elite entrava e provava uma das
lendárias "migalhas", fornecidas a eles pelas humanas enrugadas.
Chegara
mais uma manhã. Parlô abriu seus olhos e apreciou a vista do vigésimo quinto
andar, onde dormira. Saiu de debaixo de uma das muitas caixas brancas que pareciam
germinar dos prédios, como galhos de árvores, onde se protegia do vento frio
noturno. Parlô tinha fome e, novamente, se esgueiraria pelos territórios de
pombos mais fracos e menos influentes em busca de suas sobras ou de qualquer
coisa que pudesse bicar pelas ruas. Ou talvez se atrevesse um pouco mais.
O
limite era a floresta. A massa verde de árvores. O labirinto de clorofila, um
inferno para todos os pombos urbanos. Haviam lendas sobre predadores. Criaturas
que se alimentavam de sua espécie. Nenhum pombo que ousou entrar na floresta
retornou para contar a história. Parlô mesmo conhecia um pombo que tinha um
primo cujo melhor amigo de um tio havia se perdido na floresta e nunca mais voltara.
A floresta era cheia de árvores frutíferas, isso era o chamariz para os mais
pobres e aventureiros, a recompensa pelo risco de morte. Em suas fronteiras,
algumas das tais árvores frutíferas se proliferavam. Parlô ouvira falar de um
desses locais. Aproveitando as árvores desgarradas da floresta, humanos
construíram mais uma das tão cobiçadas praças. Em território aberto e seguro,
não demorou muito para que os pombos da elite descobrissem e reivindicassem o
local pra si. Hoje Parlô invadiria esse local.
Seu
histórico de invasões territoriais era positivo. Quase nunca era pego. Quase
nunca.
Logo
em sua segunda invasão Parlô se deixou levar pela ganância. Conseguira chegar à
uma das árvores de um parque, tinha todas as doces frutas que podia comer ao
alcance de suas patas. Os donos do território estavam ocupados demais com a
chegada das humanas enrugadas, as que os traziam as lendárias migalhas. Parlô
deveria ter pego as frutas e saído, como da primeira vez, mas ele não conseguia
parar de olhar para as migalhas. Grãos de cor ocre, tão chamativos e tão
apetitosos. Mesmo os pombos de elite, outrora tão corteses e ainda assim tão
intimidantes, se digladiavam por eles. Parlô tentou, em um rasante, roubar uma
das migalhas. Sua tentativa foi infrutífera e lhe rendeu uma captura em pleno
ar. Em um ato de pura crueldade, Parlô teve sua perna esquerda decepada a
bicadas pelos donos do território, como castigo por sua ousadia. Hoje a falta
de sua perna esquerda não lhe era empecilho e, para ser sincero, passava despercebido
aos olhos de quem via, por ser tão ordinário. Grande parte dos pombos das
periferias tinham um membro decepado, uma asa torta ou era cego de um olho.
Tudo causado pelos mesmos motivos. Mas isso não os impediam de tentar, ao menos
uma vez na vida, ter aquilo que para a elite era rotineiro. Parlô os odiava. Já
não sabia o que lhe motivava mais a roubar deles, se necessidade ou puro
sentimento de vingança. Não que os fosse afetar ter duas ou três frutas ao
menos para comer, mas era a única coisa alcance de Parlô.
Lá
estava. De cima do pequeno prédio ele assistia os pombos da elite se saciarem
de frutas em seu mais novo território. Pouco mais atrás, a floresta irradiava
um desconforto tremendo, uma aura perigosa que apenas os mais inclinados a entrar
nela pela promessa de suas recompensas poderia sentir. Ele não gostava de estar
ali.
Parlô
esperou o momento certo para ir até a árvore frutífera no centro do território.
Esse momento era o da chegada das humanas enrugadas, quando todos os pombos se
juntariam ao redor delas. Não demorou tanto até que uma delas surgisse. Traziam
sempre um recipiente de papel pardo repleto de migalhas. Os pombos locais
entraram em frenesi quando a viram. Rodearam-na assim que ela se sentou em uma
das grandes cadeiras de madeira e logo o mar de pombos recebeu as migalhas
pelas quais clamavam tão desesperadamente. Parlô aproveitou a deixa e voou por
trás dos outros pombos em arco. Usou o tamanho da própria árvore da qual
roubaria para cobrir sua aproximação. De um dos galhos mais altos ele apreciou
a vista. Aquela sensação prazerosa de que estava fazendo algo errado. Enquanto
os pombos lutavam por migalhas, lá estava ele se saciando das pequenas frutas
avermelhadas. Ele perdera as contas de quantas vezes havia feito algo do gênero,
mas não era como se fizesse sempre, o risco era grande demais. Verdade fosse
dita, ele era viciado na adrenalina e esse era mais um fator que o motivava.
Falhara mais vezes do que podia contar também, embora só tivesse sido capturado
uma delas. Nas outras, fugira voando por entre prédios, casas, automóveis,
pessoas e uma vez, até passou por dentro de um bueiro. Era o ponto positivo em
conhecer bem a região.
Enquanto
comia concentradamente as frutas em bicadas pequenas e frenéticas, Parlô ouviu
um som que fez gelar sua alma. Arrulhos raivosos de uma revoada de pombos. Um deles
provavelmente o avistara e havia informado aos outros, que agora voavam numa
formação hostil em direção a ele. Dessa vez não teria como escapar. Quis chorar
quando se deu conta de que a formação deles era a mesma que outros usaram no
dia em que fora capturado. Não podia voar contra o semicírculo de pombos que se
fechava em torno dele a cada segundo que se passava. Tiveram tempo demais para
se organizar enquanto Parlô se saciava em seus espólios. O único caminho a se
tomar era adentrar a floresta que se encontrava diretamente atrás dele. Ou
podia perder um olho, ou talvez outra perna. O que seria pior?
Ele
se lembrou da dor que tivera de suportar quando perdera sua perna esquerda. Não
aguentaria uma segunda dose daquilo. Em um movimento desesperado, ele voou em
direção a floresta. Ainda planando por cima das copas das árvores ele olhou
para trás. Esperava que apenas estar ali seria o suficiente para dar fim à
perseguição. Estava errado. E como estava. Todos os pombos pareciam ainda o
estar seguindo e estavam se aproximando rapidamente. Não tinha jeito, ele teria
de apelar. Mergulhou pela primeira clareira que encontrou e costurou
rapidamente o tronco de algumas árvores. Continuou enquanto ainda ouvia o
barulho de asas atrás de si. Ele mesmo não sabia se estava voando ou não em
círculos. O panorama era sempre o mesmo, árvores, arbustos e vinhas. Era um
labirinto marrom e verde, de fato.
Ele
agora estava repousando sobre um tronco espesso. Tomando fôlego depois de
finalmente ter perdido seus perseguidores. Olhava céptico ao seu redor. Cada
ruído da floresta fazia seu coração trepidar. Com o tempo ele fora se
acostumando aos sons e deixando sua guarda baixa. Agora outra coisa chamava sua
atenção, as frutas. Eram tantas. Frutas conhecidas e desconhecidas. Era um
paraíso de comida e não havia uma alma viva sequer capaz de impedi-lo de se
saciar com tudo aquilo. Seria mesmo aquela floresta tão perigosa assim? Parlô
alçou voo por uma fresta pela copa das árvores. Do céu pôde ver o quão longe
estava da cidade, os altos prédios entregavam a posição. Ele podia facilmente
voltar são e salvo. Foi quando caiu a ficha. Se voltar era tão fácil, por que
ninguém, até hoje, o fizera? A resposta estivera debaixo de seu bico por todo
esse tempo. Aquele lugar era um paraíso.
Ele
estava cansado, mas não conseguia se segurar. Procurava alegremente pela
floresta, tentando encontrar algum outro pombo, ou quem sabe até mesmo uma
colônia deles. Podia existir. Devia existir. Quando ficava com fome, Parlô
pousava sobre algum galho e comia frutas. Simples assim. Ele irradiava
felicidade. A ideia de poder viver bem pelo resto de sua vida, de nunca mais
ter que se preocupar com comida ou com sua integridade física em busca dela, o levava
às nuvens. Ao fim da tarde, depois de muito explorar sua nova casa, Parlô se
acomodou em um nicho bem acolhedor de uma árvore alta, uma árvore frutífera,
"Comida na porta de casa.", ele brincou consigo em seus pensamentos.
Fechou seus olhos, precisava de um pouco de descanso. Aquilo era incrível
demais para ser verdade. Se algum outro pombo tivesse voltado e os informado
daquele lugar, não haveriam mais problemas para os pombos menos afortunados...
Se pegou então ponderando o porquê daquilo nunca ter acontecido. Os pombos mais
pobres não costumavam ser egoístas. Parlô mesmo sempre dividia o que roubava
com aqueles tão pobres quanto ele. Era possível que a majestade desse lugar os
fizessem esquecer imediatamente de suas raízes? Agora não era hora para
ponderar a respeito disso. Ele o faria. Assim que o sol nascesse, ele o faria.
Voltaria à cidade com algumas frutas e informaria a todos sobre o santuário que
descobrira.
Parlô
teve uma noite sem sonhos. Até por que tudo com o qual ele poderia sonhar já
estava ao alcance de suas penas.
Acordou
de súbito quando um grito desesperado o alcançou. Parlô abriu seus olhos
assustado e se deparou com algo esverdeado indo em sua direção. Se abaixou em
reflexo e caiu do nicho onde estava. Bateu forte suas asas de maneira
desajeitada quando viu o chão se aproximar numa velocidade alarmante. De alguma
forma sua dança serviu de algo. O bater desordenado de suas asas amortecera sua
queda. Ainda um tanto desnorteado, ele olhou para cima. Uma criatura verde e
esguia se arrastava árvore à baixo, sibilando enquanto lambia o ar. Aquele ser
exalava perigo. Apenas a vista daquilo vindo em sua direção era o suficiente
para fazer parar de funcionar todos os seus músculos.
- Sai dessa, cara. Você tem asas.
Voe! - alguém exclamou de algum lugar.
Fora
sua consciência? Parlô não sabia. Não importava. Independentemente do que
fosse, havia lhe tirado daquele transe e lhe devolvido a capacidade de voar.
Bateu suas asas com força e saiu dali o mais rápido que pôde. Sem sequer olhar
para trás ele continuou. Seu paraíso não era tão perfeito no final das contas.
Descobriu
o quão difícil era voar durante a noite em uma floresta. A luz da lua que
vazava por dentre as copas frondosas estava longe de ser o suficiente para
iluminar seu caminho. Frequentemente Parlô precisava se esquivar reflexivamente
de pequenos galhos. Apesar disso não parou de voar.
- Me espera. - gritou novamente a
voz estranha.
Parlô
agora sabia que não era sua consciência. Era algo vivo. Algo que o seguia. A
voz que o acordara. A voz que o salvara. Ele olhou para trás bem rapidamente e
avistou uma criatura marrom escura que o seguia com certa facilidade. Tinha
problemas em acompanhar a velocidade de Parlô, mas desviava com destreza de
todos os obstáculos pelo caminho. Ele parou pelo seu salvador em um pequeno
galho e se espantou quando o tal salvador o alcançou. Ao invés de pousar ao seu
lado, escolheu um pequeno ramo acima do seu e se dependurou ali, de cabeça para
baixo. "Que pássaro estranho.", Parlô pensou.
- Você se machucou muito? Espero
que não. – Disse a criatura. – Nunca te vi por essas partes. É novo por aqui? Tem
que ser novo. E tem que tomar cuidado. A floresta é perigosa durante a noite. Sim,
perigosa. Muita gente tentando se alimentar de você. – A criatura então riu,
mas só um pouco. – Você parece ser um cara legal. Quer que eu te leve para
minha casa? É um local seguro.
Como
a criatura falava. Parlô esperou pacientemente enquanto em sua cabeça julgava
aquele ser. Sua hiperatividade era difícil de acompanhar.
- Ah, oi. Me chamo Parlô. – Parlô
deixou escapar, ainda bem desajeitado. – Olha, muito obrigado pela ajuda. Coo. Mesmo. Sinto que você salvou minha
vida.
A
criatura voltou a falar e falar e falar. Parlô parou de prestar atenção depois
de um tempo. Assistia apenas a boca da criatura abrir e fechar. Pensava agora
se realmente valeria a pena trazer outros pombos até a floresta. Aquela
criatura repugnante que quase o comera não era um fator muito positivo a se
atribuir ao seu paraíso. Mas, se talvez viessem apenas durante a parte da manhã
comer as frutas e então voltar para a cidade, ou se Parlô encontrasse um local
seguro onde pudessem ficar. Poderia ainda dar certo. Ele se deu conta de que a
criatura ainda estava falando e então o interrompeu.
- Desculpe. Coo. Você falou a respeito de um lugar seguro. Poderia mesmo me
levar parar lá?
A
criatura se calou e pareceu esboçar um sorriso com o pedido de Parlô.
- Claro, claro, claro. Claro que
sim. Levo para minha casa. É logo ali. Me chamo Stoker. Isso. Me segue.
Stoker
então abriu suas asas e se foi. Parlô o seguiu da melhor maneira que pôde. Seu
guia desviava de todos os obstáculos e isso facilitou a jornada para o pombo
desacostumado. Em uma dessas acrobacias evasivas, Stoker gritou, e então
mergulhou rapidamente. Parlô não entendeu bem. Apesar de estranhar, fez o
mesmo. Em pleno ar, sentiu um golpe contra todo seu corpo. Agora Stoker se
afastava rapidamente dele. Algo apertava seu corpo com força e o levava para
fora do curso. Parlô olhou para cima em um ângulo que só era possível graças a
seu pescoço flexível. Uma enorme ave marrom, tão bela quanto medonha, o tinha
agarrado com sua pata esquerda e agora voava na direção contrária a de Stoker.
- Com licença, Coo. Será que você poderia, por
gentileza, me soltar? – Gritou Parlô dentre as batidas de asas do grande
pássaro.
A
ave olhou para Parlô por um segundo e voltou-se novamente para frente. Então
disse.
- Mil perdões amiguinho, mas você
é a minha janta. Não posso te deixar ir.
- Por que me jantar quando tem
tantas frutas a sua disposição? Coo.
- Não me leve a mal, mas, não sou
do tipo que come frutas. Não é como se não gostasse de você ou algo do tipo. É
apenas a cadeia alimentar. Nós corujas comemos carne e você é carne, simples
assim. Sem ressentimentos.
Ele
nem soube mais como reagir. O aperto de seu captor era forte demais. Parlô não
tinha como sair daquela. Se lembrou de quando foi pego pelos outros pombos, de
quando deceparam sua perna. Aquilo seria pior.
A
grande ave pousou silenciosamente em um espesso galho. Manteve Parlô
pressionado contra o tronco.
- Eis o que vai acontecer. –
Explicou a coruja. – Pretendo te engolir por inteiro e depois vomitar uma
pelota dos seus restos, agora, como sou bom vou te dar uma escolha: Prefere
morrer antes ou depois de ser engolido?
A
mente de Parlô parou de funcionar. Fora choque em cima de choque. Tudo lhe
espantava naquele novo lugar. Um paraíso onde ele encontrara os extremos de
felicidade e tristeza. Onde ele enfim encontrara vida e logo então, sua morte.
- Não tenho todo o tempo do
mundo. Minha barriga está roncando. Escolha logo por favor.
Parlô
não o fez. Continuou encarando os enormes olhos redondos se seu captor.
Um
minuto se passou até que a coruja perdesse a paciência.
- Olha, eu tentei ser um cara
legal, mas você não me deixa escolha. Obrigado pela refeição e tenha uma boa
noite. – Disse enfim trazendo Parlô em direção a sua boca.
- Negativo. Parlô não é seu.
De
algum lugar, Stoker caiu sobre a coruja, a desequilibrando. Ela precisou soltar
Parlô para conseguir se firmar. Parlô, agora solto, voou para longe, em
desespero.
- Coruja estúpida. Predador
podre. Não vai comer ninguém, não, não vai. Parlô, sai daqui. Sai daqui muito
rápido. – Stoker gritou.
Ele
nem olhou para trás. Aquela noite estava sendo demais pra ele. Voou em linha
reta, desviando de alguns galhos e batendo em outros. Já não ouvia mais o
estardalhar dos dois se engalfinhando, mas mesmo assim continuou voando. Em
frente. Sempre em frente.
Quando
sua mente se estabilizou e o deixou voltar a raciocinar, se pegou pensando que
Stoker havia sido deixado para trás lutando com uma criatura duas vezes maior
que si. Parlô se sentia incrivelmente mal. Stoker havia salvado sua vida duas
vezes na mesma noite e agora fora abandonado com uma enorme facilidade. Parlô
precisava voltar. Não se perdoaria se não o fizesse. Então o fez
Tentou
refazer o caminho da melhor maneira que pôde, mas não foi o suficiente. Acabou
perdido. Quando finalmente desistiu, pousou em uma árvore. Ficou ali, retomando
seu fôlego, olhando para o nada. Então algo no chão chamou sua atenção. Um
movimento vagaroso de algo que parecia se arrastar. Algo marrom escuro. Era
Stoker. Ele rapidamente mergulhou até o chão e ficou ao lado de seu salvador.
- Stoker! Está tudo bem com você?
Coo.
Stoker
sorriu para Parlô, tentando inutilmente esconder toda sua dor, todos os danos
causados ao seu corpo.
- Estou ótimo. Tinha que ver o
outro cara. Botei ele pra correr.
Parlô
não pôde deixar de sorrir. Não entendia como ele podia continuar com seu senso
de humor depois daquilo.
- Parlô, chegue mais perto. Não
estou conseguindo falar muito alto.
Ele
então se abaixou e levou seu ouvido para mais próximo de Stoker.
- Eu não podia deixar a serpente
ou a coruja te comerem. Você já era meu desde o começo.
Stoker
então cravou seus dentes com força no pescoço desprotegido de Parlô e nem mesmo
suas penas o impediram de chegar na carne. Com uma sugada rápida do sangue,
Parlô bambeou sobre sua pata e caiu pro lado, se libertando da mordida de
Stoker.
- Espera um pouco, jantar.
Espera, espera. – Disse Stoker, fracamente, enquanto se arrastava na direção de
Parlô.
Era
só o que lhe faltava. Parlô finalmente entendera o porquê de nenhum pombo ter
voltado da floresta. Aquele paraíso era a casa de assassinos impiedosos.
Stoker
colocou sua força nas patas dianteiras e conseguiu se erguer. Seus olhos
vermelhos revelavam sua sede por sangue. Parlô se sentia nu, indefeso e usado.
Stoker havia lhe salvado duas vezes, para que no fim pudesse então se alimentar
dele. Repentinamente, raiva germinava em seu âmago, ódio bombeava em suas veias,
fúria esquentava seu corpo e a mais pura ira exalava de suas penas. Parlô deu
um salto à frente e bicou com toda sua força. Stoker, fraco e desprotegido, não
conseguiu se defender e com isso perdera um de seus olhos vermelhos. Parlô
ignorou o chiado de dor de Stoker e continuou seu ataque. Bicou, bicou e bicou.
Perdeu a noção do tempo. Há minutos Stoker já não produzia sons, mas lá estava
ele, bicando.
Ele
o havia matado. Seu corpo estava caído defronte a Parlô. O que havia dado em
si? Nunca sentira tanta raiva.
Parlô
se sentia tonto, cansado. Se arrastou até a raiz alta de uma árvore e conseguiu
abrigo. Estava fraco. Se algum predador o encontrasse estaria acabado e não
havia nada que ele pudesse fazer a respeito disso.
Adormeceu.
Quando
abriu seus olhos já era manhã. Soube disso apenas pela luz que vazava por entre
as frestas das folhas. O chão era um mosaico de luzes e sombras. O corpo de
Stoker ainda estava por perto, largado. Parlô sentia fome, seu corpo estava
quente e seu pescoço coçava muito no local onde Stoker o havia mordido.
Levantou voo e subiu na mesma árvore que o abrigara. Escolheu a fruta mais
suculenta e a bicou. Estava amarga. A cuspiu e tentou outra. Amarga. As mesmas
frutas que comera no dia anterior agora não pareciam mais tão apetitosas, mesmo
que ainda vistosas. Ele tinha fome, mas aquilo não o satisfaria. Parlô captou
algo no ar. Fechou seus olhos e focou no cheiro doce que agora sentia. O seguiu
então, árvore à baixo. Quando abriu seus olhos estava diante do corpo de
Stoker. Seu rosto estava desfigurado em uma polpa vermelha, brilhosa e...
suculenta. Parlô precisava daquilo. Não sabia o que o motivava, mas tinha
certeza de que era aquilo que queria. Afundou seu bico no corpo de Stoker e se
pôs a sugar o líquido vermelho, a essência do ser. Aquilo o fez feliz, o
saciou. O que havia acontecido com ele? Nunca havia bebido sangue até então.
Era bom. Não. Era ótimo.
Quando
se satisfez, pensou em seu próximo passo. O que faria a respeito dos pombos
pobres? Os traria até a floresta? Ele mesmo já não tinha vontade de ficar por
ali, preferia tentar sua sorte com frutas pela cidade, até porque as frutas
dali já tinham perdido a graça. Talvez toda a animosidade do local afetara sua
mente e, com isso, seu paladar.
Parlô
precisava voltar. Avistou à sua direita uma clareira. O sol banhava aquele
lugar como se uma grande lupa tivesse queimado um círculo de árvores locais. A
luz solar estava mais forte hoje, muito forte. Quase hostil. Parlô voou baixo
até ela e quando chegou, alçou voo. Assim que seu corpo tocou a luz do sol, ele
sentiu sua temperatura subir ridiculamente, fumaça começou a ser liberada das
pontas de suas penas e o desespero tomou conta de seu ser. Ele mergulhou
novamente para a proteção das sombras, onde, de imediato, se sentiu melhor. Não
era possível que o sol estivesse tão quente assim, era? Ele se aproximou da
fronteira que a sombra das árvores fazia com a luz do sol e estendeu a ponta de
sua asa até que ela se banhasse em luz. O efeito fora o mesmo. Sentiu queimar e
viu fumaça sair de suas penas. Recolheu sua asa. O que estava acontecendo com
ele? O que a floresta havia feito com ele?
Continuou
por horas encarando a luz. De vez em quando testava novamente a temperatura do
sol, apenas para se decepcionar com o mesmo resultado. A noite acabara chegando
e com ela se fora o perigo que a luz solar apresentava. Parlô foi acima da copa
das árvores. As estrelas e a lua não o machucavam. Ao longe avistou as luzes da
cidade e em direção a elas ele voou.
Pelo
caminho ele pensou em como poderia ajudar os pombos pobres. Não os levaria à floresta,
estava certo disso. Era perigoso demais e traumatizante demais. Não seria capaz
de trazer frutas para eles, não sozinho. Malditos eram os pombos de classe
elevada.
Quando
na fronteira da floresta, Parlô avistou a praça que da qual ele havia roubado
no dia anterior. Sabia que durante a noite, alguns dos pombos eram deixados de
vigia pelas árvores frutíferas, postes ou outros lugares estratégicos. Um
deles, inclusive, avistou Parlô de longe e fez cara feia. Parlô não gostou
daquilo e agora se tocara do quão faminto ele estava. Não, não era fome. Era
sede. Parlô estava sedento, e não era de água.
Poucos
ouviram o bater de asas, chilreios desesperados e arrulhos inconstantes naquela
noite.
Durante
as noites subsequentes, os pombos de elite foram deixando a cidade. Sumindo sem
deixar vestígios. Uma nova era começara. Pombos mais pobres dominaram as praças
e outros pontos disputados, mas faziam deles um lar para todos, ao invés de
egoistamente os tomarem para si. Sabiam que algo estava acontecendo. Boatos e
rumores corriam pela cidade de que um ser místico aparecia durante a noite
devolvendo todo o mal que a elite causara até então. Ele era visto como um
herói pelos mais pobres e um demônio pelos mais bem nascidos. E, mesmo depois
de anos, depois de gerações, quando a cidade estava limpa de toda a avareza, a
lenda ainda vivia como lembrete de que não se devia deixar o poder subir à
cabeça, pois senão, ele surgiria novamente, para dar um basta naqueles que
tornavam a vida dos outros miserável.
Assim
foi imortalizado. Para nós, apenas o vingativo Parlô. Para eles, a lenda,
Nosfer-rato.