quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Curtas #6

       Alguns têm o sonho de deixar sua marca na história. Outros querem apenas poder viver a sua história.


                                                                                              Heróis Modernos


Era uma garagem mal iluminada. Cadeiras estavam espalhadas em um círculo, voltadas pra dentro. No canto do aposento, uma mesa com biscoitos de sabores diversos, duas garrafas térmicas com sucos e uma pilha de copos descartáveis virados com a boca pra baixo.
As pessoas chegaram aos poucos. Dois homens, duas mulheres e um garoto. Na verdade este tinha mais de dezoito, mas em comparação aos outros presentes era apenas um garoto.
- Bom, eu queria começar agradecendo a presença de todos vocês. - Disse um dos homens. Ele era o maior e mais forte do grupo. De aparência rústica, barba hirsuta e músculos proeminentes. Ele passava certo ar intimidante. Nos olhos, entretanto, trazia consigo um brilho dócil e gentil. - Quando tive a ideia de formar esse grupo não estava certo de que outros como eu viriam, mas pensei mais a respeito e cheguei à conclusão de que era esse o mesmo medo aquele o qual tentamos combater. O medo de estarmos sozinhos. De sermos inúteis.
Todos o olhavam atenciosamente. Cada um deles trazia consigo suas bagagens emocionais. Em seus olhos o pedido de ajuda e a centelha de força de vontade que exclamava "chega!".
- Eu queria começar nossa primeira sessão me apresentando. Me chamo Gustavo Almeida. Tenho quarenta anos e meu apelido é... - Ele se interrompeu por alguns segundos. Fitou o chão. Engoliu seco. Respirou fundo. Criou coragem e continuou. - Meu apelido é Homem-Cotia. Meu super poder... - Ele falou, quase cuspindo o "super" em desdém. - ...É me transformar em uma preá.
As interrogações eram claras em todos os semblantes da sala. Gustavo então se adiantou.
- Os contarei minha história, mas antes, gostaria de também poder conhecê-los.
Todos se olharam em expectativa. Nenhum deles queria ser o próximo. Alguns segundos de silêncio se passaram até que o homem mais novo levantasse a mão.
Gustavo indicou com um gesto incentivador para que prosseguisse.
- Eu sou o Alfredo... - Ele se interrompeu em um pigarro. - ...Urin. Alfredo Urin. Tenho vinte e dois anos. Meu apelido é Samamboy. Meu poder é mudar de cor. Mas apenas em tons de verde.
- "Samamboy" como em samambaia? - A mulher magra perguntou sem muita maldade.
O homem a olhou com uma pontada de raiva em forma de cenho franzido. Então respondeu.
- Sim, como em samambaia. - Disse entredentes, se contendo.
- Não precisa ficar nervoso Alfredo. - Gustavo falou. - Estou certo de que estamos aqui pelo mesmo motivo.
- Então que ela se apresente agora. - Alfredo sugeriu rispidamente.
A mulher olhou para todos. Seus olhos arregalados em puro terror.
- Ei. Com calma. Não pretendemos obrigar ninguém a nada. Cada um tem seu tempo. - Gustavo dizia. - Ela vai se apresentar se quiser.
- Eu vou. - A mulher falou em uma voz fina que subitamente se calou.
Todos podiam ver que ela apertava com as unhas os próprios joelhos. Estava realmente se empenhando apenas para estar ali.
- Eu... - Sua voz era estridente. Esganiçada. Não parecia ser só por nervosismo. - Eu me chamo Ofélia Rodrigues e...
Então ela se calou por completo, fitando o próprio colo.
- Está tudo bem Ofélia. - Gustavo tomou a iniciativa em tom de voz brando. - Como eu disse antes, estamos aqui pelo mesmo motivo. Não precisa ter medo ou vergonha.
A mulher respondeu apenas com um anuir de cabeça, mas continuou em silêncio profundo por um ou dois minutos enquanto a expectativa aumentava.
- Eu vou então. - A mulher gorda pediu. - Sou a Porfíria Augusta de Vita. Meu apelido é A Gorda. E meu poder é levitar.
Todos a olharam com certa curiosidade, menos Ofélia que continuou encarando as próprias coxas.
- Mas esse é um poder incrível. - Alfredo falou por todos.
- Exceto que só posso levitar um ou dois centímetros acima, apenas, de superfícies sólidas.
- Ah. - Alfredo deixou escapar, se sentindo culpado. - Entendo.
- Continua sendo algo legal, do meu ponto de vista. Ao menos seu poder serve de algo. - O último homem falou. Ele usava óculos escuros, mesmo dentro da sala. Não era tão alto e nem tão baixo. Usava jaqueta de couro preto e um colar ornamentado com presas de algum animal pequeno. Não importava de onde você o olhava, aquela aparência gritava "problema". - Me chamam de Poça, e é exatamente o que sei fazer. Liquefaço meu corpo em água, e só. Não controlo líquidos, não me movo enquanto meu poder está ativo. Sou apenas uma poça. E, a propósito, me chamo Igor Fernandes, trinta e dois anos.
O silêncio dominou o ambiente por algum tempo, até que Ofélia resolveu, enfim, falar.
- A-4. Eu metamorfoseio meu corpo em papel. - Ela disse baixinho. - E só.
Alfredo se levantou e pegou alguns biscoitos na mesa de canto enquanto Gustavo voltava à sua história.
- Desde pequeno posso me transformar em um preá. Exceto que meus amigos nunca souberam a exata diferença entre um preá e uma cotia. Quando eu tentava corrigi-los, riam de mim. Era mais engraçado me ver frustrado. Então o apelido pegou, Homem-Cotia. Não me transformo fazem dois anos e cinco meses. A vergonha que sinto, mesmo sendo privilegiado com um poder...
- Ao menos você é capaz de algo. - Disse Igor. - Eu viro uma maldita poça. Eu fico estirado no chão. Liquefeito. Sem poder me mexer como quero. Apenas um monte de água.
- Num mundo onde homens e mulheres voam, têm super força e agilidade sem igual, eu consigo mudar de cor. Para tons de verde. - Alfredo completou, desanimado.
- Meu apelido sequer tem a ver com meu poder. Mas isso nem vem ao caso. Vocês estão indo pelo caminho errado. - Porfíria disse. - Não estamos aqui para chorar e reclamar. Não pra descobrir qual de nós tem o poder mais inútil. E sim para superar nossas experiências ruins. Superar nosso medo do ridículo.
- Exatamente, Porfíria. - Gustavo concordou entusiasmadamente. - Aqui dentro ninguém é melhor ou pior que ninguém, e lá fora também. Somos todos humanos, acima de tudo. Quem somos é o que importa, não são nossos poderes que nos definem.
Todos respiraram fundo. Sabiam que Gustavo tinha razão. Estavam cansados de serem menosprezados ou julgados por seus poderes. Porque eles mesmos tinham de fazer isso entre si? Não fazia sentido algum.
- Essas alcunhas que nos deram no decorrer de nossas vidas, esses apelidos, são grande parte do nosso problema. - Porfíria comentou.
- As raízes desses títulos estão entranhadas profundamente na gente. Precisamos nos libertar disso. - Gustavo sugeriu. - De hoje em diante o Homem-Cotia, Samamboy, A-4, Poça e, bem, A Gorda - Ele disse hesitante, mas continuou quando Porfíria acenou que estava tudo bem. - Eles não existem mais. Somos boas pessoas.
- Com habilidades excêntricas. E só. - Alfredo concluiu.
As sessões continuaram por semanas, todas as segundas e quartas. Se conheceram mais intimamente. Seus trabalhos, suas infâncias, seus amores, suas decepções, seus problemas, em suma, suas histórias. Confidências trocadas junto as novas amizades.
- Uma vez eu evitei um encontro inesperado com minha ex-namorada na rua. - Igor contava, risonho, no bar onde agora se encontravam aos sábados. - Virei poça no susto e lá fiquei até ela passar.
Todos riram. Porfíria até deixou sair um pouco de cerveja pelo nariz. Já estava um pouco alterada.
- Foi aquela que te traiu com uma amiga sua? - Ofélia quis saber.
- Essa mesmo.
- Eu ganhava muito no pique esconde me escondendo entre qualquer vegetação. - Alfredo confessou enquanto gesticulava para o garçom. - Desse mais uma rodada. - Pediu em um berro então.
- Veem só? - Gustavo falou enquanto empalava batatinhas fritas em série com um palito de madeira. - Nossos poderes não são de todo ruins. Eu também já usei o meu ao meu favor. Eu me transformava todo dia no caminho para a escola. Tinha um beco que me poupava quinze minutos de caminhada, mas eu só conseguia passar pelo pequeno buraco na cerca de ferro que fechava o caminho na minha forma de preá. Eu sempre pude dormir por mais quinze minutos graças a isso.
- Eu sempre escrevo anotações no meu corpo. - Ofélia falou um pouco entusiasmadamente demais.
- Mas isso nós todos podemos fazer. - Igor disse, gargalhando quando Ofélia colocava a mão na boca ao perceber que tinha gritado.
Todos riram alegremente.
- É mesmo? - Ofélia caçoou. - Mas eu consigo anotar a lápis.
Todos riram ainda mais.
- Eu ainda uso meu poder constantemente. - Porfíria falou. - Sempre que posso me jogar de um lugar alto, para cortar caminho, o faço. Levitar nulifica o impacto com o solo e, como levito perto demais do chão, as pessoas as vezes nem percebem o que fiz. O rosto delas quando me veem pular de dez metros e cair numa pose heroica, me levantar e sair andando como se nada tivesse acontecido, é impagável.
- Parkour. - Alfredo gritou. E todos riram noite à fora.
Suas fobias e vergonhas foram diminuindo a cada dia que passava. Juntos eram capazes de superar qualquer adversidade. Os cinco ganharam um novo super poder. O super poder mais super que qualquer outro poder. A amizade.
Um dia, no parque, Gustavo se transformou em cotia, sem motivo aparente. A verdade era que ele sentia saudades de se transformar. As pessoas ali presentes riram de sua habilidade, mas a aprovação no olhar de seus amigos fez com que ele ignorasse todo o resto.
Não levou muito tempo até que os cinco estivessem exibindo seus nem um pouco incríveis poderes enquanto brincavam juntos.
Anos se passaram para os cinco. Alguns formaram família, outros tocaram pra frente suas carreiras, mas todos mantiveram a amizade firme e forte.
Ainda moravam na mesma cidade pacata de sempre. O vínculo com o local era difícil demais de ser quebrado. Fossem os invernos quentes, as promoções semanais do supermercado, ou quem sabe o fato de que hoje em dia, cada um deles era respeitado por toda a população, pelos heróis que eram.
Ninguém se esqueceria do dia em que o Capitão Poça, sozinho, salvara cerca de quarenta crianças do orfanato em chamas. Ou quando o Matiz Verde e o Homem-Preá emboscaram o grupo de caçadores ilegais que estavam ameaçando espécies da fauna local. Quando a exímia artista marcial, B-0, capturou os bandidos responsáveis pelo assalto ao banco da cidade com seus cortes de papéis tão precisos. E a grande Le Vita, que com seu enorme talento, entrou para o livro dos recordes como o maior número de cachorros-quentes comidos dentro de quinze minutos, colocando então a pequena cidade nos holofotes por um tempo.

Não salvavam o mundo, mas não precisavam. Viviam suas vidas pacatas, repletas de problemas comuns. Faziam o bem que podiam e quando podiam, e, o mais importante de tudo. Eram felizes, não só com o que tinham, mas, finalmente, com quem eram.